Diário do Alentejo

Chuva é “uma bênção do céu”, mas ano agrícola não está garantido

10 de novembro 2023 - 09:20
Agricultores pedem medidas estruturais no combate à seca
Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

A água que tem caído nas últimas semanas é “uma bênção do céu” para a agricultura de sequeiro. No entanto, repete-se o padrão verificado no ano passado, o que, a manter-se, poderá significar mais um ano perdido e um “pau de dois bicos” para quem já investiu nas sementeiras.

 

TEXTO ANÍBAL FERNANDES

Na campanha passada a precipitação no distrito de Beja atingiu os 300 milímetros por metro quadrado – cerca de metade do registado nos anos 60 do século XX –, mas metade foi registada em apenas dois meses (setembro e outubro). De janeiro até maio não caiu pinga de água e as colheitas ficaram muito abaixo do expectável.

António Parreira, de Aljustrel e dirigente da Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo, diz ao “Diário do Alentejo” que a chuva das últimas semanas “foi uma bênção de Deus” e que sem ela a situação seria “dramática”.

No entanto, ressalva que esta água “permite começar a preparar as terras, mas está-se a assistir à tendência do ano passado. Na altura das sementeiras choveu, mas depois a água faltou e as colheitas foram nulas ou, praticamente, nulas”. Este bem que agora caiu do céu pode vir a revelar-se a desgraça de muita gente: “Os agricultores já investiram – sementes, adubos, gasóleo, etc. – e podem não vir a colher nada”, alerta.

O também vice-presidente da ACOS – Associação de Agricultores do Sul, diz que já se percebeu que, com as alterações climáticas, este “é um problema estrutural”. E se não podemos mandar na chuva há que “acautelar” o investimento na agricultura de sequeiro, nomeadamente, através de “seguros e apoios ambientais”, uma vez que esta atividade é fundamental para a manutenção de um determinado habitat e garante da biodiversidade.

Por outro lado, com a mudança do clima, a tendência é para períodos curtos de muita chuva e períodos longos de seca. Por isso, António Parreira diz ser necessário “armazenar essa água” e não exclui a possibilidade de transvases, a começar dentro do próprio território. “Se se encaminhasse a água das ribeiras de Terges e Cobres para a barragem do Roxo seriam menos 15 milhões de metros cúbicos por ano que poderiam ficar na albufeira do Alqueva e ser distribuídos por outros locais. Há linhas de água que podem ser canalizadas para as barragens já existentes”, insiste.“Se medirmos a água que cai anualmente dá para as nossas necessidades. Há que a reter antes de ir para o mar”, o que depois obrigará “a ir lá buscá-la com os custos que isso importa”, diz, referindo-se a tecnologia de dessalinização.

 

SECA NO ALTO SADO

Mas a situação não é igual em todo o Baixo Alentejo. Ilídio Martins, da direção da Associação de Regantes e Beneficiários de Campilhas e Alto Sado, diz que a situação “melhorou um pouco para o sequeiro, mas que os “rios e ribeiras continuam a não correr” na sua região. “Existe um contraste muito grande entre o Norte e o Sul e, aqui, o Norte é logo a partir de Lisboa para cima”, concretiza.

Não admira que numa zona em que era habitual semear cerca de 1200 hectares de arroz, agora a área ocupada com este cereal seja de apenas 100 hectares, refere como exemplo da mudança de costumes a que as alterações climáticas obrigaram o setor. “As expectativas são grandes, mas só quando chegarmos a fevereiro é que poderemos tirar ilações”, conclui.

Dados divulgados na primavera pelo REA Alentejo (projeto promovido pela Associação para a Defesa do Património de Mértola que pretende criar um modelo replicável para restaurar a produtividade agrícola e florestal nas zonas semiáriadas do sudeste de Portugal) mostram que, em 80 anos, o valor médio de precipitação na região caiu para metade e que “o clima e as más práticas agrícolas fizeram com que 94 por cento do Baixo Alentejo se tornasse suscetível à desertificação”, com a região de Mértola a ser a que mais sofre com a esta realidade. Os 13 concelhos do distrito na área da Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (Cimbal) apresentam 38 por cento do seu território com suscetibilidade crítica à desertificação, 35 por cento muito elevada e 21 por cento elevada. Apenas cinco por cento conta com níveis moderados e um por cento com níveis reduzidos.

No boletim da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), em 30 de outubro, apenas a bacia hidrográfica do Guadiana estava com reservas acima da média, com 67,5 (62,1 de média). A bacia do Sado registava 36,7 (42,5) e a do Mira 31,0 (68,7), as duas abaixo da média.

A barragem do Monte da Rocha está a oito por cento da sua capacidade e há dois anos que não fornece água aos agricultores da região. A situação poderá ficar resolvida se a ligação à barragem do Roxo ficar concluída, como se espera, em 2025. A barragem de Santa Clara, na bacia hidrográfica do Mira, está a 30 por cento da sua capacidade e já com algumas restrições ao uso da água.

 

“NÃO” AOS ESPANHÓIS

Entretanto, a pretensão dos agricultores espanhóis em se abastecerem de água do Alqueva tem vindo a desencadear reações negativas por parte dos agricultores alentejanos.

Rui Garrido, presidente da Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo (Faaba), não vê “com bons olhos” a cedência de água do Alqueva a Espanha devido à seca e, se tal acontecer, vaticina prejuízos para a lavoura alentejana. Diogo Vasconcelos, presidente da Associação dos Jovens Agricultores do Sul (Ajasul), diz que o Alentejo “não se pode dar ao luxo” de ceder água do Alqueva a Espanha.

Rui Garrido, em declarações à “Lusa”, diz que não vê, “à partida, essa pretensão com bons olhos. Tem de haver muitas conversas e tenho algumas reticências” sobre essa possibilidade.

Na opinião de Rui Garrido, a pretensão espanhola pode colocar em causa a agricultura alentejana que é beneficiada pelo Alqueva, cuja quota anual é de “590 milhões” de metros cúbicos de água e, neste ano, “se não foi ultrapassada, está à beira de ser ultrapassada”. “Portanto, a água que está disponível para agricultura na nossa região já não chega e temos de renegociar mais água. Ou com a EDP ou fazer mais barragens para captar mais água”, afirmou.

Por seu lado, Diogo Vasconcelos diz não perceber “porque é que havemos de ceder a pouca água armazenada que temos, num dos poucos sítios que temos para a armazenar, aos agricultores espanhóis, quando os portugueses também têm falta de água”, e recordou que Portugal também enfrenta “um período de seca muito grande”. Com “tanta falta de água e de capacidade de armazenamento”, o dirigente associativo considera que o País “não se pode dar ao luxo” de ceder ou vender a que tem armazenada.

O Ministério do Ambiente e da Ação Climática garante não ter recebido, “até à data, qualquer pedido” de Espanha sobre a captação de água do Alqueva. “Portugal tem em curso com Espanha uma negociação para a definição do regime de caudais na secção de Pomarão, no rio Guadiana”, isto é, a jusante da barragem e no troço do rio no concelho de Mértola.

O presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA), José Pedro Salema, a meio de outubro, explicou que a albufeira alentejana tem água suficiente para entregar aos vizinhos espanhóis, mas avisou que “a manta é curta” pelo que “ou tapa os pés ou a cabeça”, e a que for transferida já não volta.

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