Arranca na próxima quarta-feira, em Beja, a quarta edição do Festival das Marias, uma iniciativa que “se centra na perspetiva da arte no feminino”, frequentemente “ofuscada pelo preconceito de género”. A par do festival, de periodicidade anual, tem vindo a ser promovido o Entre Marias, um encontro mensal, com workshops e oficinas, “com mulheres de Beja para mulheres de Beja”. A luta pela igualdade de género, diz a diretora artística do festival, é um trabalho “contínuo”.
TEXTO NÉLIA PEDROSA
Dar visibilidade à criação artística no feminino. É este o principal objetivo do Festival das Marias – Festival Internacional de Artes no Feminino, cuja quarta edição arranca na próxima quarta-feira, dia 4 de outubro, em Beja, prolongando-se até ao dia 28. O evento, uma parceria entre a Companhia Alentejana de Dança Contemporânea (Cadac), grupo de teatro Lendias d’Encantar e Belic.Arte.Cultura, passará ainda por Aljustrel, Mértola e Santiago do Cacém.
A diretora artística do festival, Leopoldina Almeida, sublinha, em declarações ao “Diário do Alentejo”, que “a mulher nas artes, muitas vezes, é vista como atriz, mas não tanto como criadora, como dramaturga, como cenógrafa, como realizadora”. “O que tentamos trazer para os palcos são mulheres que estão no meio artístico mas que não têm só aquelas funções que normalmente têm – de dizer o texto dos outros ou cantar músicas dos outros. Elas próprias são produtoras e criadoras de cultura”, reforça, chamando a atenção para a dificuldade, por exemplo, “que algumas mulheres escritoras têm em editar”, em comparação com o homens, ou para o facto “de a maior parte dos autores portugueses estudados nas escolas serem homens – as mulheres são raras, normalmente, é a Sophia de Mello Breyner”. Se não houver esta consciência, diz, “uma pessoa pode passar o secundário sem estudar uma única mulher escritora”.
Mas o festival criado em 2019 “também foi evoluindo ao longo destas quatro edições”, alargando o seu leque de propostas, passando a integrar, para além de peças de teatro e concertos, também workshops e iniciativas do género, “em que as próprias mulheres são um agente ativo”, e ainda atividades nas escolas.Em janeiro de 2020, sensivelmente dois meses após a realização da primeira edição do festival, teve início também o Entre Marias, um encontro mensal, com workshops e oficinas, “com mulheres de Beja para mulheres de Beja”, em que “às vezes estão no grupo como formadoras, outras vezes como formandas”. “Pareceu-nos pouco trabalhar esta temática só uma vez por ano [aquando do festival]”, justifica Leopoldina Almeida, adiantando que os temas tratados no Entre Marias “são muito variados”, dependendo “dos interesses das próprias pessoas”.
E mais recentemente, por proposta de algumas alunas do ensino secundário da Escola Diogo de Gouveia, em Beja, “que agora já estão na faculdade”, nasceu o Festival das Mariazinhas, dirigido ao 3. º ciclo e ao secundário e cuja terceira edição deverá ter lugar em março do próximo ano. A também professora de geografia destaca como um dos aspetos mais interessantes das Mariazinhas, por exemplo, serem os próprios alunos do secundário “a prepararem sessões sobre o que é o feminismo, a igualdade de género, para as turmas do 3.º ciclo”. “Acho interessante haver esse trabalho entre pares, com uma linguagem idêntica, e acho que isso, às vezes, traz mais modificações do que vir alguém do exterior. Acredito muito no trabalho das pessoas para as pessoas”, diz. O facto de “as miúdas terem ido ao Entre Marias e terem dito que também gostariam de fazer um festival na Diogo de Gouveia, de terem vontade de fazer alguma coisa, é ótimo”, acrescenta ainda a responsável, reforçando que “ainda há uma data de coisas que é preciso trabalhar, nomeadamente, as raparigas terem alguma consciência dos seus direitos e daquilo que podem fazer sendo raparigas”. Alguns dos seus alunos, nomeadamente do 7.º e 10.º anos, frisa, também “têm, muitas vezes, muitas questões e preconceitos, especialmente, em relação à identidade de género e à orientação sexual”.
O festival e o Entre Marias “são uma gota de água”
“Acho que isto nunca está ganho. Temos de estar sempre a lutar [pela igualdade de género]. Isto é contínuo. Não vai estar ganho com nenhum festival, nem com nenhuma iniciativa local. Todas as pessoas têm que diariamente fazer alguma coisa para fazer parte da mudança. Nós [com o festival e o Entre Marias] estamos a dar esse contributo, de alguma maneira, numa escala muito restrita. Se calhar o Entre Marias tem menos visibilidade do que o Festival das Marias, no entanto, acho que é um trabalho mais profundo e de continuidade. Mas estes trabalhos não são de um dia, de uma semana ou de um mês, são trabalhos de anos. [O festival e o Entre Marias] são uma gota de água. Eu acredito no trabalho na comunidade e que nós é que podemos resolver as nossas questões. As próprias pessoas têm imensas responsabilidades e nem sequer sabem”.
Leopoldina Almeida considera que “seria pretensioso” da sua parte “achar que o festival ou o Entre Marias fazem alguma mudança na vida das pessoas”, no entanto, diz, “dar visibilidade à criação dos outros é sempre importante”. “Em termos estatísticos isto é zero vírgula qualquer coisa, mas na vida de cada pessoa individual, às vezes, faz a diferença”. O importante, reforça uma vez mais, “é dar visibilidade às mulheres”.
Pelo segundo ano consecutivo, os espetáculos no Pax Julia Teatro Municipal, em Beja, terão um desconto de 13,3 por cento para as mulheres, no caso de serem comprados presencialmente, correspondente à diferença salarial entre géneros no País. É apenas “um pequeno gesto, quase simbólico, entre o muito que ainda há por fazer no longo caminho para a igualdade de género”. “É para as pessoas se aperceberem que ainda há diferenças, mas que não se traduzem só em dinheiro. A maior parte das pessoas que está a tempo parcial nos trabalhos são mulheres; a maior parte das pessoas que decide não investir na carreira porque têm filhos pequenos são mulheres; a maior parte das pessoas que ainda faz mais horas de trabalho semanal em casa, trabalho não pago, são mulheres; a maior parte das pessoas que prepara e cuida dos outros para depois estarem disponíveis para irem para a escola, para os seus empregos, todos arranjadinhos, são mulheres. As diferenças traduzem-se em tempo de investimento no lazer, na sua formação pessoal, na sua progressão da carreira. [O desconto] é só um alerta para as pessoas perceberem que, infelizmente, isso ainda se passa e que existe um discurso normalizado de que se a casa está desarrumada a culpa é da mãe ou da mulher”, conclui.
Concertos, oficinas feministas, teatro e laboratórios
A apresentação do Festival das Marias está agendada para as 18:00 horas de quarta-feira, dia 4 de outubro, no restaurante Vovó Joaquina, em Beja. Do vasto programa para Beja, destaque para o espetáculo “Poemas à boca fechada”, com Lindiana Murphy feat Rosa Garcia (dia 4, 22:00 horas, Vovó Joaquina), para a oficina feminista “As diferentes vertentes dos feminismos”, com Lúcia Vicente (dia 7, às 15:00 horas, Divo’s Institute), para a peça de teatro experimental “Eva – Work in progresso”, pela Cia Kamala Teatro (dia 13, 22:00 horas, no Divo’s Institute), para o laboratório “Ela estava a pedi-las – Desconstruindo discursos em torno da violência contra as mulheres”, com Lisa Ferro (dia 14, 17:30 horas, no Divo’s Institute), para o espetáculo de dança pela Cia FAC e Cadac (dia 19, 21:30 horas, no Pax Julia Teatro Municipal), ou para os concertos no Pax Julia com Maria Cristina Plata (dia 18, 21:30 horas) e Carolina Deslandes, que terá como convidada especial Bárbara Tinoco (dia 21, 21:30 horas). A festa de encerramento do festival, em Beja, ficará a cargo do rapper Tokju Fokju (dia 28, 23:00 horas, Divo’s Institute).