A centenária Feira de Garvão começou ontem, dia 12, no concelho de Ourique, prolongando-se até domingo. Foi também ontem que Ricardo Guerreiro, fotógrafo de profissão e com ligações a essa terra, apresenta o livro Garvonesa – Reencontro com uma raça histórica, uma obra que dá a conhecer aquela que é uma das raças bovinas portuguesas, autóctone do Baixo Alentejo com especial incidência na bacia hidrográfica do Mira, que esteve bem perto da extinção há uns anos.
O autor procurou que o livro “não fosse uma galeria de postais, mas antes uma coleção de pequenas narrativas visuais acompanhadas de legendas curtas em que o leitor é guiado por alguns enredos simples que desvendam comportamentos, peculiaridades e ligações destes animais com o meio que habitam”.
Em suma, o livro que Ricardo Guerreiro gostaria de ter sobre a raça garvonesa “e que não havia”. O “Diário do Alentejo” desvenda um excerto e algumas fotografias da obra.
“O improvável, serôdio e longo desabrochar de um projecto"
"Passam 32 anos desde que os meus avós se reformaram, deixando de viver na herdade do Arzil. Os mesmos 32 anos separam-me do contacto próximo e recorrente com gado bovino. Em retrospetiva, quase parece que o livro que agora tem nas mãos é produto de uma série de coincidências e que o mais provável era nunca ter existido.
Corria o ano 2000. Volvida quase uma década desde as últimas férias em contacto diário com a manada e as duas últimas garvonesas do Arzil, regressava de visita a familiares no Algarve. Sem que pudesse imaginar, a paragem na área de serviço de Alcácer do Sal viria a ser, em grande parte, responsável pela existência desta obra. No toalhete que cobria o tabuleiro da cafetaria podia ler-se “Algumas Raças de Bovinos de Portugal Continental”. Tratava-se de uma edição do portal Naturlink, hoje extinto, para promoção das raças portuguesas, em que uma das raças ilustradas era a Garvonesa. Era a primeira referência escrita que via sobre a raça. Até então, apenas tinha as referências orais na zona de Garvão. Estava incrédulo com a “descoberta”.
Decidi ali e então que ia fazer “qualquer coisa” sobre a raça Garvonesa. Não sei bem o que isso queria dizer, pois nesse tempo não fotografava nem realizava filmes, fosse profissionalmente ou como passatempo. Não estava propriamente a pensar num livro, nem num filme… que coisa? A ideia latente amadureceu lentamente e seria precisa mais outra dúzia de anos para que, já a laborar como fotógrafo, decidisse começar o projeto. Pouco mais de uma década, com vários interregnos e regressos, várias exposições, um artigo na National Geographic Portugal, palestras multimédia e um concurso de desenho juvenil, tudo sobre a raça Garvonesa, separa o arranque, deste momento. De certa forma, este reencontro com a Garvonesa foi também um regresso a casa, pois foi em muito responsável por estar de novo tão regularmente em Garvão e (re)criar a ligação que hoje tenho com a zona a que chamo, sem complexos, “a minha terra”, sem lá ter nascido ou alguma vez vivido.
Talvez este livro seja ainda um fechar de capítulo. Até há pouco tempo, alimentei a ideia de que também um dia diria com propriedade “às vezes lá no meu monte” e possuiria gado chamusco, com reses de amansia e tudo. Ainda não aconteceu. Por ventura não acontecerá, mas o imenso gosto de partilhar estas histórias sobre a raça Garvonesa com o público, deixando-as em livro, traz-me algum cómodo e consolo à alma.
A si, que folheou, leu, bom proveito e obrigado."
Foto | A travessia de cursos de água para mudança de pastagens é um comportamento que pode ocorrer espontaneamente ou ser espoletado pelo vaqueiro. Quando tive oportunidade de fotografar uma destas ocorrências com a Garvonesa, os drones ainda eram uma miragem e para obter uma perspetiva mais interessante e invulgar que não fosse tomada das margens da ribeira, tive de recorrer ao uso de um caiaque.
Foto | Sinais de boa adaptação e resiliência. No pino do verão, depois do pasto bem rapado do chão, a rama de azinheiras e sobreiras é um complemento alimentar bem vindo para os animais que a consigam alcançar.
Foto | Fim de tarde em São Martinho das Amoreiras com o criador de Garvonesa, Manuel António Domingos, misturando trabalho fotográfico com reviver de experiências da juventude.
Foto | Após parir, uma vaca come a placenta. Há várias explicações propostas para este comportamento, chamado de placentofagia. As principais são a reabsorção de nutrientes relevantes no pós-parto, o simples saciar de fome ou a eliminação de vestígios do parto para ocultar, de eventuais predadores, o facto de haver uma nova e vulnerável presa na zona.