Diário do Alentejo

A herança da olaria de Beringel

24 de março 2023 - 12:00
“Sabores no Barro” ficam até domingo, dia 26, na vila alentejana
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Em tempos a vila de Beringel foi sede de concelho e terra de oleiros, mas acabou por perder esses dois marcos. Hoje em dia contam-se pelos dedos de uma mão aqueles que ainda fazem da olaria a sua atividade principal e o sustento da sua família. O “Diário do Alentejo” foi até à freguesia conversar com António Mestre e José Manuel Parreira, dois resistentes deste ofício.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

A porta esverdeada, ao fundo da travessa da Cabine, quase que passa despercebida aos mais distraídos. A rua pouco movimentada, quando comparada com o IP8 que passa a escassos metros, e alcatroada há um par de anos por insistência de quem a usa, é há já algum tempo procurada por aqueles que, sendo da terra ou não, querem uma caneca, um prato, um vaso ou qualquer outra peça de barro feita por António Mestre.

 

Em uma das paredes cinzentas de fora da casa n.º 1 está uma talha, o tesouro do oleiro beringelense, pintada à mão. Quem por lá passa não desconfia que por detrás daquela porta gasta do tempo está o único mestre de olaria da freguesia e um dos poucos do concelho de Beja.

 

Os cães de António Mestre, ainda que presos no quintal, dão o alarme quando alguém se aproxima. Sabem que, por norma, o dono está grande parte dos dias sem companhia e numa correria entre a sala de olaria e o forno de cozer.

 

“Esta tarde ou amanhã devo começar a cozer algumas peças. Os dias têm estado bons e deu para secar a maioria delas para agora as meter no forno”, diz, enquanto mostra alguns vasos e talhas que estão numa das três salas de secagem.

 

Por agora continua a moldar. Ao “Diário do Alentejo” mostra que o pé não se cansa de dar à roda e que o barro, apanhado entre agosto e setembro à picareta, deve ser erguido de uma só vez e trabalhado de forma rápida para não amolecer.

 

“Uma vez tive cá um rapaz que tinha tirado um curso de olaria e que queria aprender mais comigo. Sentei-o aí nessa roda e joguei-lhe o barro, teve um dia inteiro para fazer duas taças pequenas e disse-me que a forma como eu trabalhava, e o meu próprio barro, eram diferentes do que estava habituado”, conta. António Mestre diz até concordar. Sabe que trabalha “à antiga”, com um barro, feito por si, que não é o que dão às novas gerações para aprender. “O barro que é apanhado no campo meto-o na barreira com água para amolecer. Depois, quando quero começar a trabalhar numa peça qualquer, passo-o por esta máquina, a única que existe em toda a minha olaria, para o tornar mais elástico e limpo”, explica.

 

E acrescenta: “Normalmente não é necessário passa-lo mais do que duas vezes, a menos que esteja muito mole e impossível de trabalhar”.

 

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A alguns metros dali, debaixo do telheiro de José Manuel Parreira, as inúmeras caixas que empilham os tijolos de burro perdem-se de vista. Do lado direito do alpendre é “temperado” o barro com saibro, para “lhe tirar a força”, antes de ser triturado na máquina e passar para o carrinho de mão. A mesa de trabalho é coberta de cinzas para que o barro não agarre as paletes de madeira onde ficará a secar durante “quatro a cinco dias”.

 

Homem de poucas palavras, José Manuel Parreira relembra a época em que o negócio pertencia ao seu pai. Diz, soltando um sorriso, que nessa altura chegaram a estar debaixo do telheiro mais de “20 trabalhadores” na época do verão e que agora é só ele com a ajuda da esposa e do filho. “Gostava que ele pegasse nisto, mas não sei”, desabafa.

 

A produção, feita maioritariamente por encomenda, é toda ela artesanal e, consequentemente, manual. Com cada molde é possível fazer dois tijolos e colocar quatro a secar, antes de ir 10 horas ao forno. “Este forno foi construído em 2019 por um senhor que tinha 81 anos na altura. Consegue cozer sete mil peças a 900 graus de cada vez, com a particularidade que é só meter lenha naquela porta lateral e fechar com outros tijolos a porta da entrada para não entrar o ar”, explica.

 

À semelhança de António Mestre, também o fabrico de tijolos de burro só é exequível nas épocas de calor ou, “como neste ano, em que os dias têm estado quentes”, porque, caso contrário, “se os tijolos não estiverem bem secos, vão ao forno e estalam”.

 

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“SABORES NO BARRO” O ESPELHO DA FREGUESIA

António Mestre e José Manuel Parreira são o retrato da cultura de olaria presente, desde os anos 60 do século passado, em Beringel, no concelho de Beja. Na altura, segundo o presidente da junta de freguesia, Vítor Besugo, “existiam na vila cerca de 65 famílias a viver do barro desde a fabricação de peças à comercialização”, sendo esse número muito menor atualmente.

 

Desta forma, e para “mostrar o melhor que se faz em Beringel” e “promover a olaria como marca identitária”, nasceu, em 2014, promovida pela junta de freguesia, a iniciativa “Sabores no Barro”. Esta, segundo Vítor Besugo, permitiu um “outro olhar sobre a olaria e outros trabalhos no barro, como a fabricação de tijolo de burro e peças decorativas”, colocando a vila como “um marco na rota desta tradição milenar”.

 

A edição deste ano de “Sabores no Barro” começou ontem, quinta-feira, e decorre até ao próximo domingo, dia 26, tendo como embaixadores oficiais Antelmo Serrado, António Zambujo, António Caixeiro, Bernardo Espinho e Bruno Chaveiro.

 

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