Diário do Alentejo

A paixão pela guitarra portuguesa e pelo seu ensino

14 de janeiro 2023 - 17:00
Mariana Martins, natural de Odemira, é a primeira mulher licenciada neste instrumento
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Não chegava com os pés ao chão quando o professor lhe colocou a guitarra portuguesa no colo, que lhe “parecia gigante”. E “foi paixão à primeira nota”. A partir do 5.º ano foi um crescendo de aprendizagem para, na altura de eleger o curso a tirar, fazer provas de acesso à Escola Superior de Artes Aplicadas, em Castelo Branco, que é a única a ter a licenciatura em Guitarra Portuguesa, e conseguir a melhor nota.

 

Mariana Martins, natural do concelho de Odemira, foi a primeira mulher a ingressar no curso. E, aos 21 anos, a primeira mulher do mundo a licenciar-se em Guitarra Portuguesa. Fomos conhecer-lhe o dia a dia. E os sonhos.

 

Texto Júlia Serrão

 

Desde 2017 que Mariana Martins dá que falar. Na altura, porque ingressava num curso onde, até então, só entravam homens. E há um ano e meio, ao consagrar-se a primeira mulher do mundo a licenciar-se em Guitarra Portuguesa.

 

A guitarrista, de 23 anos, vive o acontecimento com “felicidade” porque foi o que “quis alcançar durante muitos anos, e com alguma responsabilidade”. Mas, principalmente, como resultado de um percurso “natural, no seguimento dos estudos”.

 

“Ser a primeira mulher guitarrista licenciada foi uma espécie de cereja em cima do bolo”, comenta, acrescentando com alegria que, entretanto, outras mulheres já lhe seguiram os passos na universidade. “Existem cada vez mais interessadas. E, aos poucos, vai-se tornando habitual ver as mulheres a tocar”.

 

Agora, está a um passo de tornar-se também a primeira mulher mestre na área. Uma vez que, sem deixar de lecionar guitarra portuguesa – carreira que começou no 2.º ano do curso, pois ensinar foi sempre o objetivo –, passou diretamente para o mestrado, que está a fazer em “Ensino da música com opção guitarra portuguesa”. Uma tese que explora a vertente “de iniciação” no ensino primário.

 

“Adoro dar aulas aos mais novinhos”, salienta, para explicar que “pôr miúdos tão pequeninos a tocar guitarra portuguesa ficou mais fácil” desde que se construíram instrumentos mais pequenos. As cordas duplas de aço da guitarra de tamanho normal dificultavam muito a tarefa.

 

A dissertação inclui considerações sobre repertório e programa escolar, os grandes vazios no ensino do instrumento em conservatório. “Sem repertório específico para estudar, é preciso procurar muito para encontrar partituras” que se adaptem aos alunos mais novos, “e ainda se escreve pouco para guitarra portuguesa”, aponta.

 

Por outro lado, “não existe um programa de ensino, como existe para os outros instrumentos”, que os professores e conservatórios possam seguir, sendo que cada um tem de se inventar. “Isto não quer dizer que seja mau, mas era bom que houvesse pelo menos uma base”, realça.

 

O ENCONTRO COM A GUITARRA PORTUGUESA

Estava no 5.º ano quando conheceu a guitarra portuguesa, no âmbito do ensino articulado gratuito em Odemira. Inicialmente, estava interessada em violino e bateria, mas a professora e a mãe convenceram-na a optar pelo instrumento musical especificamente português, que alegavam ser “tão bonito”.

 

“Fui ter a primeira aula e foi paixão à primeira nota”, observa. “O professor colocou-me a guitarra no colo, eu nem sequer chegava com os pés ao chão, e a guitarra parecia gigante. Mas assim que toquei as primeiras notas, soube que tinha feito a escolha certa. E o professor era espetacular!”.

 

Explica que o docente tinha uma grande paixão pela Guitarra Portuguesa e pelo ensino do instrumento, e sabia transmiti-lo, “o que marca toda a diferença”. A partir dessa hora, José Alegre passou a ser a referência maior na vida de Mariana. “Até hoje, é o meu guia”, afirma.

 

De alguma forma, seguiu-lhe os passos: ele é o primeiro licenciado em Guitarra Portuguesa, ela é a primeira mulher licenciada em Guitarra Portuguesa. Lembra que “o mais engraçado é que brincava com ele, dizendo-se que ia ser assim”, embora a possibilidade de vir a ser a primeira entre homens não influísse “em nada” a sua escolha.

 

“Eu era uma criança a querer seguir música, que tinha um leque de opções, e uma delas era um instrumento muito belo que era a guitarra portuguesa. Era mais uma menina entre as iniciadas, mas a única que seguiu querendo chegar mais longe”.

 

Concluído o 9.º ano, “o 5.º grau da música”, e não existindo possibilidade de continuar na área em Odemira, a mãe encarregou-se de “pesquisar escolas que tivessem o ensino da guitarra portuguesa no secundário”, e no início do ano letivo Mariana foi estudar para a Academia de Música de Lagos.

 

A mudança exigia um esforço monetário significativo para os pais, que tinham a filha mais velha na universidade, mas estavam dispostos a mais sacrifícios para ajudar a mais nova a concretizar os sonhos. Em boa hora, contaram com a ajuda da academia de música que pagava o alojamento e o transporte para a aspirante a guitarrista ir a casa aos fins de semana.

 

LECIONAR, PARA PASSAR CONHECIMENTO E ENTUSIASMO

Dois anos depois transitou para a Escola Júlio Dantas, em Lagos, de onde, com o 12.º ano, partiu para a Escola Superior de Artes Aplicadas do Instituto Politécnico de Castelo Branco. Além de ser a única mulher em guitarra portuguesa, “era a única no curso com o intuito de sair de lá com as habilitações para ser professora”.

 

E, à semelhança do seu primeiro professor, mestre na arte de comunicar aos alunos conhecimento, paixão e entusiasmo pela guitarra portuguesa. A oportunidade de ensinar surgiu logo no 2.º ano da licenciatura. Agarrou-a e passou a ser “uma Mariana mais feliz e realizada”, diz de si própria.

 

“Isto de dar aulas de guitarra portuguesa é a paixão de dar aulas de guitarra portuguesa. E é transmitir isso aos alunos, pô-los a tocar e pô-los felizes com isso.”

 

Atualmente, Mariana Martins vive entre regiões, com o propósito de ensinar e aprender mais. Leciona guitarra portuguesa em três escolas do ensino público (nos agrupamentos de escolas da Bemposta, Padre António Martins de Oliveira, em Lagoa, e Poeta António Aleixo, em Portimão), em duas do ensino privado (na Academia de Música de Portimão e no Conservatório de Artes de Lagoa) e desloca-se frequentemente a Castelo Branco no âmbito do mestrado. Para ter o prazer dos fins de semana na sua Odemira – onde está “a casa e a família”.

 

“O que eu mais gosto de fazer é ensinar guitarra portuguesa, este instrumento único e nosso”, volta a sublinhar. Tem alunos dos sete aos 17 anos, a quem não se cansa de lembrar o quanto “são especiais por terem a possibilidade de estudar um instrumento único, tradicional, de forma gratuita, uma vez que se trata de ensino articulado”, tal como ela própria teve. “Gosto que eles percebam isso e, ao mesmo tempo, que tenham uma experiência ótima”. No ano passado, um dos seus alunos seguiu para a licenciatura, o que a deixa “muito contente”.

 

Situando-se “na vertente da guitarra portuguesa a solo”, e referindo que muita gente ainda vê o instrumento “como caminho de fado e pela tradição”, adianta que ensina as bases de ambas as especialidades para que, depois, cada um dos seus alunos possa seguir o que quiser.

 

“O meu objetivo é fazer da guitarra portuguesa um instrumento admirado, que gostem de tocar. E mostrar que é um instrumento muito bonito e com um timbre muito bonito, que pode ser reinventado.”

 

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 POUCOS CONCERTOS, MAS ESPECIAIS

Muito ocupada entre o ensino e o mestrado, a que está a dar “prioridade”, sendo que ainda faz parte da Banda Filarmónica de Odemira, a jovem não tem tempo para concertos. Embora some alguns com significado especial: “Já tive oportunidade de tocar com grandes guitarristas como Luísa Amaro, que tem sido muito atenciosa comigo e tem-me ajudado imenso, e Marta Pereira da Costa, com quem já toquei duas vezes”. Adianta que são as duas mulheres que tem visto “sempre como inspirações”, juntamente com as grandes referências masculinas, José Alegre e Custódio Castelo, seu professor na universidade.

 

Desde que terminou o curso “abriram-se muitas portas”, tendo possibilidade de vir a conhecer “muita gente incrível e com percursos diferentes”. Nesse sentido, teve oportunidade de acompanhar Marta Pereira da Costa no Festival Santa Casa Alfama, que a convidou para tocar três temas.

 

“Foi muito giro, muito bom estar a tocar com alguém tão especial. Curiosamente não me sentia nada ansiosa, só feliz, muito feliz. E era isto que eu gostava de sentir no futuro. Foi, de facto, uma exceção”, salienta. Confessa que sente alguma ansiedade face à expectativa de atuar e que já tem recusado convites.

 

“Ainda não consegui ultrapassar essa questão e também não tive tempo para me debruçar sobre ela. Mas penso que, quando terminar o mestrado e estiver mais segura com este processo todo de dar aulas, vou conseguir acalmar-me e fazer coisas bonitas”.

 

Em setembro de 2022 também participou no Festival Terras sem Sombra, em São Teotónio, onde apresentou as “guitarras de Coimbra e de Lisboa”. De manhã fez uma atividade com crianças, que pôs a “tocar pauzinhos de árvores secas” recolhidos no concelho, tendo para isso contado com a ajuda da mãe.

 

“O meu objetivo era pô-las a tocar qualquer coisa na guitarra portuguesa também, só que elas eram 50”. Mesmo assim, todas experimentaram a guitarra, e no concerto da noite voltaram a tocar pauzinhos. “Portanto, tiveram estas duas aprendizagens. Encontro estas estratégias que acho muito giras e que me realizam”, observa.

 

 MUITOS SONHOS PARA CONCRETIZAR

A experiência de tocar “em pequenos momentos” também lhe é particularmente especial. A última aconteceu no hospital de Santiago do Cacém, onde tocou três temas integrados numa palestra que ali teve lugar. “Eles gostaram muito e eu também, e nem sequer me senti nervosa. É este tipo de coisas que eu também gosto de fazer”.

 

A conclusão do mestrado promete um novo ciclo na vida de Mariana Martins, cujo sonho maior “é ter uma escola, onde seja possível aprender a tocar e a construir a guitarra portuguesa”. “Gostaria muito de conseguir manter o legado do senhor Daniel Luz, de São Teotónio, que é um construtor de guitarras portuguesas e violas campaniças, aqui no concelho de Odemira”.

 

Conta que ele lhe fez uma guitarra em 2021, um processo que acompanhou “não tanto como queria, por causa da covid”, em que lhe ia explicando todos os passos da construção, “e foi espetacular”. “A minha ideia é apostar nisso também, com a realização de workshops, e trazer outras pessoas especializadas na construção.”

 

O projeto integrado na escola que quer levar adiante, “com uma equipa”, abrange outras valências com a guitarra portuguesa como grande protagonista: “Às sextas-feiras e aos sábados, por exemplo, podíamos dar a conhecer a aprendizagem através de workshops e concertos”.

 

Uma espécie de fins de semana temáticos, “umas vezes dedicados ao fado, outras à música africana, por exemplo, em que traríamos artistas dessas áreas, e em que os alunos iam tocar também”. Fala mesmo em escola-museu. Adianta que, paralelamente, gostaria de ter tempo para fazer concertos, que passariam também pela experiência de tocar com “tocadores” de outros instrumentos, da harpa à guitarra clássica.

 

Mariana Martins, a guitarrista portuguesa a solo que, em 2022, recebeu a Medalha de Mérito da Câmara Municipal de Odemira, e reteve as palavras do presidente do município na cerimónia, de “que ‘os sonhos são para sonhar alto’”, acrescentou-lhe “se não sonharmos as coisas não se concretizam”. Por isso, garante que quer – e vai sempre – sonhar alto, e fazer acontecer.

 

ANOTAR PEQUENAS INSPIRAÇÕES PARA COMPOR

Mariana Martins participou num dos dois CD que acompanha o livro sobre guitarra portuguesa de Samuel Lopes, juntamente com quatro colegas de curso e o docente Custódio Castelo, da Escola Superior de Artes Aplicadas, do Politécnico de Castelo Branco. “Um dos CD reúne guitarristas e temas mais antigos.

 

O outro é com a juventude, digamos assim, a tocar temas que compuseram e também mais antigos”, explica. No futuro gostaria de gravar “algumas” composições suas. A guitarrista, que quando era pequena queria ser estilista, “embora não desenhasse muito bem”, diz a propósito: “Estou na fase de tentar. Às vezes tenho pequenas inspirações enquanto estou a dar aulas: sai-me uma frase bonita que penso que ficaria bem numa música, então gravo e, depois, em casa, tento melhorar e acrescentar mais alguma coisa. E daí vão saindo pequenas notas, que um dia podem resultar numa composição”.

 

De qualquer forma, já fez uma música que ainda não escreveu, dedicada ao namorado que é fuzileiro da Marinha. “Chama-se ‘O nó da saudade’”, refere, explicando que era como ela ficava, “com um nó na garganta”, sempre que se despedia dele.

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