Conhecer, compreender e contactar com a cultura bejense são o mote que conduz às visitas noturnas, organizadas pelo Agrupamento de Escolas n.º 2 de Beja, destinadas aos alunos dos cursos de Português Língua de Acolhimento e de Educação e Formação de Adultos. O objetivo passa por integrar e coloca-los em contacto com a história, a cultura e as artes do território.
Texto Ana Filipa Sousa de Sousa
O frio e o céu cinzento ameaçaram durante todo o dia uma possível noite de chuva. A imprevisibilidade do tempo dali a alguns minutos fez aparecer, antes da hora combinada, as duas turmas do curso de Português Língua de Acolhimento (PLA) do Agrupamento de Escolas n.º 2 de Beja.
De casacos e blusas de capuz, assim como com uma ou outra sombrinha na mão, o átrio da Escola Secundária D. Manuel I ficou cheio daqueles que, na aula de hoje, dão início a mais uma sessão do projeto “À (Re)Descoberta da Cultura”.
“Professora, onde vão hoje? É também ao Museu do Sembrano? É só para saber para onde encaminhar se chegar algum aluno mais tarde”, pergunta uma das funcionárias antes da saída.
Cansados de mais um dia de trabalho, a maioria deles “desde as 05:00 horas”, não se negam a caminhar até ao museu. Os olhos brilham e entre si contam histórias e episódios das suas vidas. A maioria, do sexo masculino, está em Portugal há pouco tempo e chegaram do Senegal, do Paquistão e da Índia. Fátima Chaveiro, coordenadora do Centro Qualifica e do Setor de Ensino de Adultos, refere ao “Diário do Alentejo” (“DA”) que as turmas de migrantes deste ano letivo têm “mais de 20 nacionalidades” e uma faixa etária muito diversificada dos “19 aos 53 anos”.
“A maioria dos nossos alunos não fala o português nem o inglês, mas há quem fale o francês. E isso é a maior dificuldade deles nestas visitas culturais, porque têm de fazer um esforço enorme para perceberem e tomarem atenção às explicações, que por si só já são complexas, numa língua que não é a deles”, explica.
À chegada ao Museu do Sembrano, aos cerca de 20 alunos da turma PLA, juntam-se também 10 do curso de Educação e Formação de Adultos (EFA), uma turma composta por adultos jovens, “com um perfil tradicionalmente na casa dos 18 e os 20 anos, que estão a tentar concluir o 12.º ano”.
Estas visitas culturais integram-se no plano de estudos destes dois cursos e visam proporcionar a oportunidade de ter um contacto mais direto com a cultura, que de outra forma não haveria.
“Esta [iniciativa] já é uma reedição e insere-se num projeto mais vasto, que se chama “À (Re)Decoberta da Cultura”, que começámos a implementar há alguns anos, em que aproveitávamos o cinema, o teatro, as palestras na biblioteca e as atividades culturais. Fazer visitas pelos monumentos da cidade era sempre estanho por causa do nosso horário noturno, contudo, agora, através de uma colaboração com a Câmara Municipal de Beja, também começámos a fazer essas visitas, guiadas pelos técnicos municipais, à descoberta da história e da identidade local”, começa por explicar Paula Lança, uma das responsáveis dos cursos EFA.
À medida que a visita avança, por cima de um chão envidraçado, apenas as grandes montras laterais iluminam a sala. As perguntas sobre a história da cidade de Beja começam a surgir a medo, assim como os telemóveis na mão. Querem documentar aquela experiência, seja para ouvirem mais tarde e um amigo traduzir ou para enviarem, pelas redes sociais, às suas famílias.
“E é isso que nos move, é isto o nosso grande objetivo. [Queremos] criar ligações ao território e à comunidade e fazê-los perceber a parte da cultura e do património aqui, assim como conhecer as suas culturas e as suas gentes. Nós achamos de facto que a cultura é a estratégia e o meio para chegar a muitos outros objetivos que têm a ver com o criar raízes e enriquecer no território e o [fomentar] de uma comunidade de paz, que se desenvolva e que floresça”, realça.
Muhammad Usman Ali está em Beja desde junho. Com 39 anos, é um dos alunos mais interessados pela visita e, apesar de falar urdo, a língua oficial do Paquistão, e de compreender o português, é ainda na língua inglesa que se agarra para comunicar. Diz querer voltar com a família para que esta conheça também a história da cidade onde vivem.
“Para mim é muito importante [conhecer estes locais culturais], não só a nível individual, mas também pela minha família, [porque] como os tenho aqui acho importante que eles saibam sobre a área onde vivemos”, nota.
A importância deste tipo de atividades, principalmente, junto da comunidade migrante, é reconhecida pela maioria. Papa Sohna, natural da Gâmbia, está em solo bejense há cerca de um ano e acredita que “a história e a cultura” do lugar onde agora vive são imprescindíveis para a sua “vivência” nele.
“ [Estas experiências] são importantes para a nossa vivência, porque conhecemos a história e a cultura do local onde vivemos e sabemos como é que ele se transformou até agora”, comenta.
Também Paula Lança vê nesta iniciativa uma forma de “facilitar a integração e a inclusão” destes migrantes na comunidade, porque “não só damos a conhecer o que temos, como também permitimos que eles nos deem a conhecer, apesar de não estarem nos seus territórios, o que eles fazem”.
Para os alunos dos cursos EFA, portugueses e residentes no concelho de Beja, estas atividades culturais chegam para permitir o contacto destes com a cultura e a arte que se faz na cidade, assim como possibilitar que eles olhem para o território com valor e que se sintam “ligadas a ele e o estimem”.
“Além do desenvolvimento pessoal deles todos, porque achamos que a cultura tem um peso grande, outro dos nossos objetivos é ajudar a que estes jovens se fixem, porque quanto mais gostarem deste território, e quanto mais o compreenderem, mais voltarão e, possivelmente, se tiverem oportunidade aqui de emprego, ficarão e isso é importante”, revela a professora.
Os alunos concordam. André Estebainha, de 21 anos, e Shen Haohan, de 20 anos, acreditam que estas atividades lúdico-pedagógicas são uma mais-valia para si, enquanto jovens, porque conhecem “melhor a história da cidade e a cultura dos nossos antepassados” que originaram a “cidade que nós conhecemos hoje”, contudo, afirmam que o papel destas na comunidade migrante é muito mais revelador.
“Acho muito importante [os migrantes aprenderem a nossa cultura], porque estes vêm à procura de uma vida melhor e, apesar de Portugal ser uma porta de entrada, acabam por conhecer também melhor a história da Europa e aumentarem, assim, os seus conhecimentos, [uma vez que] muitos deles não tinham essa oportunidade nos seus países”, refere André Estebainha. E acrescenta: “Com estes cursos e estas atividades acabam também por se sentirem melhor recebidos e é uma forma da comunidade acabar com o estereótipo criado em volta dos migrantes”.
Por vezes, as vozes que ecoam pelo vidrado museu fazem silêncio. Ouve-se uma história desconhecida, tão desconhecida como a própria cidade ainda o é para quase todos eles. Há quem se disperse e decida descobrir sozinho o que aquela sala tem para oferecer, assim como estão habituados a fazer todos os dias. Além de um momento cultural, este é, muitas das vezes, um dos poucos momentos do dia em que não se sentem à parte desta sociedade, diferente, que não conhecem. Nestes momentos, nestas noites, conhecem-se e dão-se a conhecer um pouco mais.
Ficou prometida a visita à torre de menagem do castelo de Beja, em março, quando o tempo assim o permitir, um dos locais onde as suas muralhas, em tempos, protegeram todos aqueles que cá moraram por dias, meses ou anos.
Assim como explicado ao entrar no museu, a cidade de Beja, como hoje a conhecemos, foi construída por diferentes comunidades que aqui residiram. Cada casa levantada, cada palavra aprendida e cada sítio contam uma história daqueles que por cá passaram. Uns por mais tempo, outros por menos. À semelhança da antiga Pax Julia, nome dado pelos romanos à cidade, também hoje Beja é um misto de culturas, povos, línguas e sabores desse mundo fora.
ENTENDER E PARTICIPAR NA POLÍTICA LOCAL
Além destas atividades culturais, como as colaborações no Festival Internacional de Teatro do Alentejo (FITA) e no Festival de Banda Desenhada de Beja, os cursos PLA e EFA são ainda impulsionados a participar “nas assembleias municipais e de freguesias”, como forma de “conhecerem o território” e “perceberem como é que as coisas funcionam”.
Segundo Paula Lança, “a ideia com os adultos é muito pô-los em contacto com a realidade e a oferta do território, [bem como], o que é que este nos pode dar”, permitindo torná--los cidadãos participativos na comunidade onde se inserem.