O número de pessoas em situação de semabrigo tem vindo a aumentar. Apesar de o Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, realizado pelo Grupo de Trabalho para a Monitorização e Avaliação da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação Sem Abrigo, referente a 2021, indicar um decréscimo de cerca de dois por cento em relação ao ano anterior (9,72% para 7,65% por cada 1000 habitantes), a Cáritas Diocesana de Beja sinalizou, de janeiro até novembro deste ano, 289 pessoas, mais do triplo, em relação às 88 que tinha identificado em 2020.
A funcionar desde março deste ano, o projeto “Estou Tão Perto que Não me Vês” pretende ajudar estas pessoas a sair dessa situação de vulnerabilidade, dando-lhes o tempo que é o tempo delas, sensibilizando, ao mesmo tempo, a comunidade para um problema que tanto pode estar à vista de todos, como entre quatro paredes, envergonhado. E dar rosto, e voz, a quem, normalmente, não o tem.
Texto Marco Monteiro Cândido e Ana Filipa Sousa de Sousa
A manhã acordou chuvosa, depois de uma noite longa demais, como o são todas as noites para estas pessoas. E fria. Uma combinação desagradável para qualquer um. Terrível e dura para quem está em situação de sem-abrigo.
Debaixo de uma chuva que não dá descanso, Filipa Duarte e Diogo Santana, técnicos da equipa de rua do projeto “Estou Tão Perto Que Não me Vês”, da Cáritas Diocesana de Beja, atravessam o parque de estacionamento de uma superfície comercial na cidade de Beja.
Passada a zona dos automóveis, com bastante movimento da pressa matinal de quem por ali anda, chegam junto a uma zona de arbustos, que divide o espaço do hipermercado da variante que passa ao largo de Beja, mesmo ao lado de uma via pedonal, muito frequentada por quem gosta de caminhar ou correr, principalmente ao final do dia. E em dias de sol. Ao contrário do dia que hoje está.
Os dois técnicos procuram por José. É um dos casos de pessoas em situação de sem-abrigo mais preocupantes que a cidade tem por estes dias. Não está. Apenas se vê uma manta no chão a fazer de colchão, uma manta a fazer de manta, uma almofada encharcada de água.
E um vazio, de condições e perspetivas de futuro, que são toda a vida de Zé, como é tratado, neste momento. O que, para muitos seria um amontoado de lixo, para Zé é toda a sua vida. Dele, nem sinal. “Vamos ver ali mais à frente, junto ao ecoponto. Às vezes vai lá buscar cartões”. Filipa Duarte, apesar da chuva que continua a cair, que caiu toda a noite, e que vai continuar, não desiste de encontrar Zé. Junto ao ecoponto não está. E a chuva continua a cair.
Procura-se mais à frente, junto a outra superfície comercial. Pouco depois, vislumbram-no, sentado no chão, encostado à parede, um pouco abrigado da chuva, junto à entrada do supermercado. De roupa e gorro escuros, fuma um cigarro pouco menos que apagado.
Talvez seja o suficiente para lhe aquecer a alma de corpo frio. O olhar, num misto de curiosidade e desconfiança, observa a equipa que se aproxima e que já consegue manter uma conversa e uma relação de confiança mais sólida do que quando começou.
“Não te sabia bem um banho quente? Posso tomar. Não queres passar lá no centro? Assim podias trocar esta roupa, está tudo encharcado, E aquele sítio ali para dormir, também… se calhar encontrávamos outro sítio”. Filipa pergunta, Zé pouco responde. Ora concorda, ora parece não ouvir, compenetrado que está no seu mundo, enquanto observa esta realidade, como se fosse um espectador.
“Se nós tivermos o carro amanhã de manhã, queres ir connosco ver outro sítio? Abrigado, debaixo de um telheiro…? Sim, sim”. As respostas pouco mais são do que monocórdicas. O que se revela pouco entusiástico pela voz, assume curiosidade pelo olhar. Zé olha. Vê e observa. O que pensa, só ele saberá, num mundo onde só o próprio tem a chave para entrar, naquele que é o seu verdadeiro abrigo.
“Estás cá de manhã? Sim. Então, amanhã de manhã, passamos por aqui”. As conversas entre os técnicos da equipa de rua e Zé, apesar de breves, já o são mais longas do que no início.
A confiança tem sido conquistada aos poucos. Se, no princípio, a presença da carrinha da Cáritas era suficiente para Zé afastar-se sem grandes conversas, agora já consegue estar algum tempo à conversa. Uma das conquistas foi conseguir que Zé fosse até ao espaço do projeto, o Espaço Estórias, tomar banho, cortar o cabelo e a enorme barba que lhe cobria a face.
“Ando à procura de qualquer coisa”. É o que Zé faz, quando lhe é perguntado como passa os dias. Qualquer coisa, numa busca incessante, que nunca tem fim, mas que todos os dias recomeça. Sem sonhos, sem discurso coerente, percebe-se que Zé não é de Beja, chegou há alguns anos, apesar de dizer que chegou há dias, semanas ou meses, consoante quem lhe pergunte ou quando é perguntado.
Não tem noção do tempo, do presente e do que passou. Quanto ao espaço, se umas vezes poderá ter vindo de Lisboa, noutras diz que nunca lá esteve. Tanto pode dizer que veio de Espanha, como da Suécia, ou que trabalhou em feiras, como em Sevilha, ou em Alcaria Ruiva, a vender roupas, facas e fazendas com ciganos. Diz que tem 67 anos, quando nem 50 deverá ter. Não sabe de onde é, apenas que não tem identificação. E que nasceu órfão e que órfão continua. Não sabe há quanto tempo dorme na rua. Atira “há meses”, como se o tempo passasse mais devagar para ele.
Desta vez, diz que veio de Elvas, antes de chegar a Beja, mas que está sozinho no mundo. Filipa e Diogo procuram-no sempre nas suas voltas de rua. Questionado sobre se gosta disso, diz que sim, de forma apressada, como que a despachar o assunto. “Abri os olhos numa barraca”, responde prontamente, a propósito do sítio onde terá nascido, antes de se levantar, apressado, e ir embora, falando com o mundo, sem falar com ninguém, a não ser com ele próprio. Para, fala, retoma o passo. Repete o ritual. Sempre com o cigarro, pouco menos que apagado, entre os dedos gastos e vividos.
Filipa volta a perguntar, em jeito de combinação: “Amanhã vamos à procura de um sítio com teto, sim?”. O encontro ficou marcado para as nove e meia da manhã.
Relento Mantas e uma almofada, nada mais. É este o espaço onde Zé pernoita, noite após noite
"O TEMPO DAS RESPOSTAS NÃO É O TEMPO DAS PESSOAS"
A equipa de rua do projeto “Estou Tão Perto Que Não me Vês” é apenas uma das componentes do mesmo. É o culminar da premissa fundamental, segundo Filipa Duarte, da atuação das instituições que trabalham com as pessoas em situação de sem-abrigo.
“Agora já se começa a reverter o paradigma do modelo de intervenção. [As instituições e a forma de atuação] começam a ficar mais focadas nas pessoas. Mas sinto que há momentos em que ainda funciona aquele modelo em que são as pessoas que têm que chegar às respostas e não as respostas que têm que se adequar às pessoas. É essencial que esses modelos mudem”.
Formada em Teatro e Comunidade, Filipa Duarte é um dos cinco técnicos que fazem parte do projeto. Além dela, o “Estou Tão Perto Que Não me Vês” comporta um psicóloga clínica, que assume a coordenação, um assistente social (no caso, Diogo Santana, o outro elemento que integra a equipa de rua), uma terapeuta ocupacional e uma animadora sociocultural, com funções, também, de monitora.
Para além do trabalho feito dentro de portas, no Espaço Estórias – um local de apoio, onde estas pessoas poderão cuidar da sua higiene, tomar o pequeno-almoço e realizar diversas atividades –, a relação de confiança começa na rua, seja pelas voltas diárias, seja pela familiaridade que se cria entre pessoas em situação de sem-abrigo e os técnicos.
Com experiência a trabalhar com esta população, em Lisboa, Filipa chegou a Beja no início do ano para integrar a equipa do projeto. Já trazia o conhecimento, mas o que veio encontrar revelou-se diferente da realidade da capital. Para começar, talvez por se tratar de um meio mais pequeno, as situações de conflito, entre pessoas em situação de sem-abrigo, são menores ou mesmo inexistentes.
Depois, a própria perceção da comunidade, da cidade, em relação a este problema. “Quando começámos o projeto diziam-nos que não havia pessoas em situação de sem-abrigo”. Mas elas existem e a prova são os números decorrentes da sinalização feita pela Cáritas Diocesana de Beja, exponenciados pela vinda de imigrantes, em busca de trabalho agrícola, mas abandonados à sua sorte, enganados.
Mas esta é uma particularidade que faz aumentar os números e que poderá ser visto como uma vaga, um fenómeno. Pelo menos, no que às nacionalidades diz respeito. Quanto ao problema, esse, parece que veio para ficar.
Os casos mais duradouros de pessoas em situação de sem-abrigo medem-me pelo acumular de dias, meses e anos. E se a falta de habitação, de um teto, é o maior e mais visível dos problemas, muitas vezes é apenas uma consequência dos quadros de consumos (de drogas ou álcool) ou de doenças mentais.
“São elementos que fazem prolongar no tempo a situação de sem-abrigo”. Mas a questão da habitação é o catalisador para uma possível resolução dos problemas. “A habitação é fundamental para podermos trabalhar outras necessidades. É mais fácil conseguirmos que a pessoa vá estabilizando [tendo habitação]. A pessoa vem aqui durante o dia. Está a chover, vai para onde? Está aqui, mas depois nós fechamos às 17:00 horas. Depois, eventualmente, quer ir para tratamento. E quando chega a esta altura, e no verão também, a pessoa está na rua, está à mercê. Chega ao fim de semana e também está na rua, não tem equipa. Portanto, não está num espaço em que consiga ter o seu bem-estar, as suas necessidades de vida preenchidas. Nem há alojamentos temporários, nem de emergência, já não estou a falar de habitações ou quartos para alugar. Nem a resposta de emergência existe”.
A constituição de um Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (Npisa) em Beja (ver caixa) é fundamental para a necessidade premente da criação de espaços onde essas pessoas, de forma temporária ou mais duradoura, em situações emergentes ou de prevenção, possam ser acolhidas. “Na emergência acabamos por trabalhar muito em reação. O que não quer dizer que não haja situações de emergência. Há sempre. Mas, há situações, quando o acompanhamento é mais continuado, em que as respostas poderiam ser mais abertas. O tempo das respostas nem sempre é o tempo das pessoas, e as respostas devem adequar-se às pessoas e não as pessoas às respostas”.
Não existindo, até aqui, o Npisa em Beja, acaba por não haver este modelo de articulação que é indicado pela Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação Sem Abrigo (Enipssa), segundo a técnica, “para que as várias instituições, que atuam no terreno, trabalhem de uma forma articulada, para que não haja duplicação de serviços e haja um acompanhamento à pessoa de uma forma mais concertada”.
“É importante que o núcleo seja constituído, uma vez que o número de pessoas em situação de sem-abrigo tem vindo a aumentar. Quando há estas situações de mais frio ou de temperaturas mais quentes, é importantíssimo que o município tenha um plano municipal para a pessoa em situação de sem-abrigo. Para que se possa ativar uma estrutura ou um plano de contingência. É algo que não existe mas que está pensado. Existem planos municipais de proteção civil, mas não especificamente para os sem-abrigo”.
A responsabilidade de olhar para estas situações deve ser compartilhada, assumida por todos. E não apenas pelo poder político, sublinha Filipa. “A cidade somos todos nós. Todos devem ser participantes naquilo que se passa e poder trazer aos municípios essa urgência de se criar políticas públicas adequadas às necessidades das pessoas que habitam a cidade”.
“O ACOMPANHAMENTO COMEÇA AQUI”
Com o pisar do primeiro degrau do Espaço Estórias, localizado na antiga Casa do Estudante, a solidão, a vergonha e os perigos da rua tendem a atenuar. Quem se cruza do lado de fora com o edifício não tem ideia da importância daquele “espaço”. Há quem lá passe à procura de um banho, de uma nova roupa, de uma pequena refeição, de uma conversa e, em último pedido, com a esperança de um mudar de vida.
Maria do Carmo Gonçalves, coordenadora do projeto “Estou Tão Perto Que Não Me Vês”, da responsabilidade da Cáritas Diocesana de Beja, que dá forma à Equipa de Rua e ao Espaço Estórias, assiste diariamente ao valor que aquela simples casa, ao fundo da rua, tem para quem não tem mais nada.
Para alguns, a ida até ao n.º10 da Rua de Moçambique acontece pouco depois do primeiro contacto com Filipa e Diogo. Para outros, “a resistência ainda é grande”. “Há pessoas que depois da primeira ou da segunda vez [que estão em contacto com a Equipa de Rua] vêm logo aqui ao espaço, mas há outras que não, porque a resistência para sair [daquela situação], ainda que precária e na rua, é grande. E por isso, temos de trabalhar as confianças e motivações para que elas comecem a vir ao drop-in fazer todas estas atividades que desenvolvem a sua autonomia e responsabilização”, refere.
Entre atividades flexíveis, que decorrem diariamente e que qualquer pessoa que chega pode integrar, e atividades estruturadas, que são desenvolvidas com regularidade e continuidade, os dias tornam-se mais leves e preenchidos. A capacitação pessoal é uma das ferramentas chave em que se trabalha para, em última instância, voltar a integrar socialmente aqueles que estão “sem objetivos de vida”.
“O intuito final [do projeto] é uma integração socioprofissional e [a aquisição de uma] habitação. Por isso, o nosso objetivo é, precisamente, irmos trabalhando pequenas atividades de modo a regular comportamentos, como o banho, o fazer algumas refeições pequenas sentados à mesa ou o lavar a loiça. Estes são pequenos ganhos, que depois, no geral, são bastante significativos”, explica a psicóloga clínica, de 50 anos.
Sentado numa das cadeiras da sala principal, António Ameixa é um dos rostos que aguarda ansiosamente pelo seu regressar a Castro Verde. Trabalhou 26 anos na função pública, como assistente operacional de ação educativa do agrupamento de escolas, mas viu a sua vida parar com uma acusação de violência doméstica.
“Eu antes tinha casa, mulher, filhos e tudo, mas tive um problema de divórcio e fui acusado de violência doméstica. Estive 40 meses no estabelecimento prisional e depois, quando saí, nunca mais ninguém quis saber de mim. Fiquei completamente sem ninguém…uma família grande e estou completamente abandonado. A família é muito unida, mas quando chega a estas coisas é que a gente vê onde é que está a família. Não querem saber”, começa por contar, enquanto esfrega as mãos com o nervosismo.
Ainda que saiba que “um copo de água e uma sopa não se nega a ninguém”, diz acreditar que os “tempos difíceis” que agora se fazem sentir são um dos motivos para a falta de ligação com os seus. Tem receio de procurar a mãe pelo choque da situação. Diz não o fazer enquanto não estiver estabilizado e uma “pessoa amiga” não “preparar o caminho” para o reencontro.
Entretanto, para já, os medos são outros. A noite. O ato de fechar os olhos e dormir nunca mais foi o mesmo, desde julho, altura em que voltou para Beja após ter tentado recomeçar uma outra vida em Santiago do Cacém. Tem medo de quem a frequenta e o que pode acontecer nela. Os barulhos, as pessoas, o desconhecido. É “duro”, revela.
Conhece a cidade “como as palmas das mãos”, desde a rodoviária à Praça da Republica e sabe, porque vê, que “cada vez são mais” as pessoas que estão nesta situação.
Ainda que os números do relatório da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem Abrigo digam que, de 2020 para 2021, o concelho de Beja teve uma diminuição de pessoas sem teto e sem casa por 1000 habitantes (-2,07 por cento), Maria do Carmo Gonçalves, pela sua experiência no terreno e pela falta de um Npisa, crê que essa não é a realidade.
“Beja também tem sem-abrigos sem serem imigrantes e temos visto os números a aumentarem muito, mas acredito que a inexistência de um Npisa pode ter contribuído para estes dados”, conclui.
Na última atualização, o projeto, entre janeiro e novembro deste ano, contabilizava 289 pessoas sinalizadas, sendo que, destas, 73 eram de nacionalidade portuguesa e maioritariamente do sexo masculino. O perfil de homem desempregado, entre os 30 e os 40 anos, com problemas de saúde mental ou de dependências, com um “histórico longo desse estilo de vida” e sem estrutura familiar é aquele que é apontado, pela coordenadora, como o mais frequente.
Contudo, Maria do Carmo admite que, ainda que não seja possível confirmar o tempo de duração em que se encontram nesta condição, sabe-se que “há pessoas que estão nesta situação há mais de 20 anos”.
Perante o cenário de crise económica que tem levado aos sucessivos aumentos de preços e das agravadas vagas de imigração que o Alentejo e, principalmente o distrito de Beja, tem recebido, a previsão é de que “não haverá grande melhoria” para o próximo ano, porque “é provável que haja mais pessoas que vão ficar em risco”.
Apesar do pouco tempo de funcionamento, o “Estou Tão Perto Que Não Me Vês”, em terreno desde março, está a dar resultados. Atualmente são acompanhadas com regularidade 68 pessoas e “já vamos tendo algumas situações onde vamos tendo integrações”.
António está a alguns passos de ser um dos casos de “sucesso” do projeto. Pelo menos nesta primeira fase de integração profissional. Recebeu, a semana passada, a confirmação de que voltará a integrar a equipa de assistentes operacionais do agrupamento e aguarda agora por uma casa ou um quarto para iniciar esta “nova vida”.
Por enquanto, limita-se a esperar, sem apreensões, o dia certo em que voltará, após quatro anos, à vila castrense. Vive um dia de cada vez, entre as idas ao Espaço Estórias e as noites mal dormidas numa casa devoluta, com alguns imigrantes senegaleses que o deixam pernoitar num “sofazito com umas mantas”. Resta-lhe esperar e viver uma hora de cada vez, um minuto de cada vez…
António vive na rua há cinco meses. Vê agora, no regressar ao seu antigo trabalho, uma “luz” de esperança para a sua vida
NÃO TER CASA QUANDO HÁ MUITO QUE NÃO SE TEM LAR
Miguel (nome fictício) tem 29 anos. De resto, pouco mais tem. Excetuando uma vida pela frente, com tudo o que ainda poderá vir. Mas onde, o que está para trás, tem um peso, pesado demais nos dias cinzentos de agora. Nasceu e viveu num bairro problemático do distrito de Beja, no seio de uma família numerosa.
Começou a consumir haxixe com oito anos, naquela que foi uma infância difícil. Dura. Demasiadamente áspera para uma criança. E que deixou marcas até hoje, como marcas na pele. “Eu fui sempre o mais traquina. Fui sempre o mais deixado [pela família]. Sempre, praticamente, fiz o que quis. E escola, tenho a quarta classe, não sei ler quase, nem escrever”.
Por volta dos 10 anos, muda de bairro. Com essa mudança, vieram também drogas mais duras. Por influência dos outros, os mais velhos. “E aí é que comecei mesmo as drogas pesadas, porque via os meus primos. E, às vezes, a companhia… a companhia não tem culpa, mas influencia…”.
Hoje em dia, Miguel já não consome drogas duras. Está num programa de metadona, como diz. Fuma haxixe, porque precisa, porque o acalma. Mas diz que largou as mais pesadas, até porque tem a noção do peso que as coisas que viveu e fez, até aqui, têm na sua vida. “Passaram-se coisas na minha vida… e sou novo, não é? Tenho uma vida pela frente…”.
A certa altura, já na adolescência, sai da sua terra e ruma à Área Metropolitana de Lisboa. “Portava-me mal, fazia roubos e essas coisas. E depois era garreias e isso… Era menor, mas aquilo foi agravando”. Com 22 foi preso por um par de anos. O tempo na prisão não foi fácil, apesar de Miguel referir que encontrou, lá dentro, alguns que o trataram como nunca tinha sido tratado, incluindo pela sua família.
“Os guardas até disseram: ‘então você não tem ninguém?’. Eu não tive nem uma visita”. Enfatiza, dando o peso de uma vida ao peso que as palavras têm: “Os dois anos que estive lá, não tive nem uma visita, não tive ninguém. Mesmo os guardas disseram: ‘então vai sair, vai para onde? Se quiser ficar aqui mais um ou dois dias…’. E eu disse que não. Alguma vez? Estava farto, dois anos ali”.
Saiu da prisão passados dois anos. Sem nada, sem ninguém, sem ter para onde ir. Sem teto ou abrigo. Passado algum tempo foi acolhido pela Cáritas local.
“Estava na rua. Tinha acabado de sair da prisão”. O que está a viver agora, não é novo. “Já não é a primeira vez, eu saí da prisão, pronto, ninguém me ajudou”. A ajuda que tive foi das companhias de sempre, mesmo que fossem diferentes: as das drogas. As do tráfico. “Pronto, para mim, nessa vida, são amigos, mas mesmo as doutoras dizem que amigos não são. Mas para mim, nesta situação…”.
Algum tempo volvido, voltou à sua terra, na esperança de reencontrar o acolhimento que nunca teve e que o tinha levado a afastar-se da primeira vez. Mesmo não gostando de contar a sua história, as palavras surgem, em catadupa, repetidas. Como se dissesse, primeiro, para os outros, e, depois, para si próprio.
“Correu mal. A minha mãe não me acolheu, nem nada. Quando vim para cá, a minha mãe não me acolheu, tive de arranjar um sítio para mim, era uma casa em que eu pagava um balúrdio e que não tinha condições, não tinha mesmo nada. Depois, a minha mãe não me ajudava e, pronto, arranjei o meu trabalho e fazia outras coisas mais, porque conheci pessoas lá em cima, ligadas ao tráfico e isso. E eu, só com o trabalho, não consegui pagar uma renda. Não consegui…! Comecei a traficar. Depois apanhei um susto e foi quando larguei isso tudo e vim para Beja. E estou assim nesta situação”.
Por não conseguir fazer face às despesas com o ordenado que ganhava no trabalho do campo, ou de pedreiro, ou de qualquer outra coisa que aparecesse, Miguel voltou ao tráfico que já o tinha acompanhado quando esteve na zona de Lisboa. Um susto e o medo de voltar à prisão, levou-o a deixar essa vida novamente.
“[O susto] foi da polícia. Apanharam-me com um bocadinho, pronto. E o meu medo foi que eu trazia muito, trabalhava com um quilo, dois, apanhei um cagaço e digo: não, já não vou lá para dentro outra vez, acabei logo com… porque dinheiro fácil é… Mas uma coisa, não faltava ao trabalho, nunca faltei ao trabalho, nunca!”.
Decide, então, largar o tráfico e a sua terra. Chega a Beja. Há seis meses. O seu elo de ligação foi a coordenadora do projeto, que agora integra, Maria do Carmo Gonçalves.
“Eu estive em comunidades e conheço a doutora já há muito tempo. Por acaso, é mais do que uma mãe, a doutora. E digo isso porque sempre me ajudou, sabe da situação”. Sem casa onde ficar, nem trabalho, que, quando aparece, é apenas pontual, esteve numa casa abandonada da cidade, que deixou há três dias.
“Eu não estava ali descansado. Quando andava a trabalhar, iam lá, rebentaram-me a porta, e depois iam-me roubar as coisas. Depois vim para um sítio… estou aí numa casa, abandonada, mas está em melhores condições. Mas nesta situação ninguém quer estar, não é? Porque se eu tivesse o meu trabalhinho e as coisas todas, eu pagava a minha renda, porque, eu, quando estive na outra casa, nunca faltei com nada ao senhorio, nunca!”. A casa onde está agora, apesar de melhor do que a anterior, também não é boa. No entanto, mesmo com poucas condições, depressa é passada a palavra de que há uma casa disponível para ser usada como abrigo. “Ainda ontem estava lá a dormir, apareceram logo lá uns dois marroquinos e não sei quem”.
Falta de condições Esta é a casa onde Miguel está a dormir há três dias
A noite, como António Ameixa referiu, e como Miguel também faz notar, é sempre o pior. A escuridão da noite é o amplificar do frio, da solidão. Do medo. É o crescer do negrume que cada uma destas pessoas carrega com elas.
“A questão da noite é complicada, vão para lá [referindo-se à casa que ocupou até há pouco tempo] drogar-se, partir garrafas, uma pessoa não está descansada e depois é perigo, uma pessoa ali sem ter privacidade, sem ter nada. O medo… É que a gente com medo pode fazer alguma coisa, percebe onde eu quero chegar? E é isso, é isso que tenho medo, como pode acontecer a mim ou a outra pessoa, não é? Mas é verdade, tenho medo, tenho. Quem é que não tem medo de estar assim num sítio? Você vai passando, vê seringas, vê isto, vê aquilo… Alguém que lhe quer fazer mal, pega numa seringa daquelas…”.
Na muita vida que ainda tem pela frente, Miguel não faz perspetivas sobre o futuro. Não porque não queira, mas porque não sabe como estará, amanhã, daqui a um mês ou a 10 anos. Apesar de não perder a esperança e a fé, que sempre teve.
“Há quem não tenha, mas eu tenho”. Acredita que Deus olha por si, mesmo que, às vezes, Ele o possa ter esquecido. “Se calhar, eu também fiz algumas promessas e se calhar não cumpri”, refere, resignado. No entanto, quer uma vida como outra pessoa qualquer. Ter casa, trabalho. Mulher e filhos.
“Gostava de ter a minha família, mas pronto. Na altura, quando era mais novo, tive as minhas namoradas, tive isso, mas nessa altura eu não quis, queria era maluquice, é assim. Na altura, não escolhi… quis esta vida. Às vezes, há quem fale só do mal dos outros. Não: eu falo de mim próprio, sei onde estou errado”.
Paralelamente ao medo, que Miguel refere muitas vezes, também a vergonha está presente no seu discurso. Na forma como encara a condição em que se encontra, quando pensa nas pessoas da sua terra e de quando descobrirem a sua situação.
“Tenho vergonha, sinto-me mal. Depois, é um que vem, vê-me aqui e diz: ‘então, dizem que tu estás a dormir ali naquele buraco…’. Sinto-me mal, percebe?”. Apesar de não pensar em voltar à sua terra, ou à sua família, Miguel refere que na rua, apesar de tudo, há amizade. “Há! Da minha parte, gosto mais de andar sozinho, no meu canto… Porque há pessoas e pessoas. Há pessoas que são boas e há outras que são más. Neste mundo da rua apanha-se de tudo”.
E cada vez se apanha mais gente na rua. Miguel apercebe-se de que há cada vez mais pessoas em situação de sem-abrigo. “Muito mais, portugueses também. Mesmo nesta situação que aconteceu agora dos trabalhadores [desmantelamento de um rede de exploração de trabalhadores agrícolas, maioritariamente imigrantes], ainda é pior”. Um cenário, onde a vergonha, mais uma vez, volta a estar presente, sempre, mas também a indiferença e o desdém de quem os vê.
“Nota-se. A gente vai num passeio, sei lá, parece que vão para o outro lado. Às vezes nem ligo, vou ligar para quê? Se calhar são piores que a gente e não têm coração e falam”.
Por agora, é tempo de Miguel partir. É hora do lanche nas instalações da Cáritas, onde também almoça e janta. Com um sorriso, tímido, que por vezes rompe o semblante sério e carregado demais para a idade, refere com visível orgulho, antes de se pôr ao caminho, como tantas vezes faz na cidade, que foi ele que cortou a barba e o cabelo a Zé, o senhor que vive na rua. Por falar nisso, será que o Zé sempre lá estava às nove e meia da manhã?
Miguel Com 24 anos ficou sozinho e na rua. Agora vive numa casa abandonada e ambiciona um emprego para reverter a situação
NPISA DE BEJA REUNIU PELA PRIMEIRA VEZ
Na terça-feira, dia 6, a Câmara Municipal de Beja reuniu-se, pela primeira vez, com a Cáritas Diocesana, o Instituto de Emprego e Formação Profissional, a Segurança Social, o Centro de Respostas Integradas, a Associação Estar, a Santa Casa da Misericórdia, a PSP, a GNR, a Ulsba e a Rede Europeia Anti Pobreza para debater, analisar e avaliar aquelas que serão as principais estratégias do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (Npisa) da cidade.
Segundo Marisa Saturnino, vereadora da autarquia, a reunião, que deu início ao Npisa, serviu para perceber como se podem “rentabilizar alguns recursos e permitir que a intervenção seja mais eficaz e sem superposição” e avançar-se, “eventualmente, com algumas respostas de urgência, caso haja possibilidades para isso”.
Em declarações ao “Diário do Alentejo”, garante que para já não quer “adiantar muito para não criar falsas expetativas relativamente aquilo que pode ou não acontecer”, mas confirma uma nova reunião, em janeiro, para “analisar documentação e implementar protocolos”.
O Npisa é um núcleo de intervenção criado, sempre que a dimensão do fenómeno de pessoas em situação de sem-abrigo o justifica, entre os municípios e as entidades do setor, público e privado, do emprego, segurança social, educação, saúde, justiça, administração interna, obras públicas, ambiente, cidadania e igualdade.
O intuito passa por conseguir ter um diagnóstico mais fiel da realidade social e, consequentemente, assegurar diferentes tipos de respostas, como equipas de rua diurnas e noturnas, equipas gestoras de caso, espaços de acolhimento diurno e noturno, habitações, cantinas e refeitórios sociais, serviço de medicação.