Diário do Alentejo

O que falta para valorizar o artesanato alentejano?

13 de novembro 2022 - 12:00
O novo Centro de Artes Tradicionais de Ferreira do Alentejo deverá estar concluído em maio de 2023
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Há cerca de três semanas, o município de Ferreira do Alentejo começou a reabilitar o edifício onde ficará o novo Centro de Artes Tradicionais do concelho. Este, localizado no rés-do-chão do antigo mercado municipal, pretende valorizar o património cultural e recuperar as artes características da região.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

A pequena sala, acolhedora, decorada delicadamente com “talêgos”, aventais, colchas, porta-chaves e quadros de tecido feitos à mão, misturam-se com as inúmeras pinturas do Alentejo e das tradições que o marido de Lisete Góis Silva pintou em tempos.

 

A antiga casa, onde tem a sua loja física, serve também de escola de música para o seu filho, e quem passa pela rua principal, distraído, não se cruza com ela facilmente se não tiver a sua habitual janela aberta e embelezada com os seus trabalhos.

 

Lisete Góis Silva começou o seu ofício, a tempo inteiro, há 16 anos quando deixou os livros e as estantes e se aposentou do seu trabalho de bibliotecária. Nos primeiros meses esteve em “anarquia” e quis “esquecer o relógio”, mas a necessidade de “ocupar o tempo” fez com que olhasse para o artesanato como uma viragem na sua vida e uma forma de se “sentir útil e viva”.

 

“Comecei no artesanato após me reformar em 2006. Nessa altura estava em forte o ponto de cruz e a renda, mas eu pensei que se me fosse meter nestes dois tipos de artesanato, que era o que toda a gente fazia, então não ia ter grande destaque. Aconselhei-me e incentivaram-me a começar a fazer ‘talêgos’, porque quem os fazia eram umas senhoras muito velhotas de Mértola e a qualquer momento podiam deixar de os fazer, [e perdia-se uma tradição] e então comecei eu”, começa por explicar ao “Diário do Alentejo” (“DA”) a artesã de 73 anos.

 

Entre tecidos, tesouras, agulhas e alfinetes, diz com um sorriso que as peças de retalhos são a sua imagem de marca e aquelas que mais a caracterizam, admitindo, entre gargalhadas, que “já me têm dito que em tendo retalhos é a minha cara”.

 

Conhecedora de vários termos em língua inglesa ligados ao artesanato, e sem medo de aprender técnicas novas, foi para uma retrosaria na margem sul do Tejo ter “lições de patchwork”, um tipo de costura feito com retalhos unidos segundo uma lógica geométrica e de cor.

 

Senhora de uma geração que aprendeu a arte de costurar com as outras mulheres da família sabe que a idade irá pregar-lhe uma partida qualquer dia e que terá que abrandar com os seus trabalhos e arranjar novas formas de os fazer. Ainda assim, mantém uma certeza: “o bichinho do artesanato irá morrer comigo, quando já não conseguir fazer determinada coisa, dedico-me a outra”.

 

A alguns metros dali, num dos armazéns do Ninho de Empresas, também o artesão Vítor Caço, de 38 anos, partilha da mesma paixão. Entrou no mundo do artesanato por conta do seu antigo emprego numa empresa local de mobiliário típico alentejano e desde aí que nunca mais quis sair.

 

“Esta doença [do artesanato] vem desde 2003 quando entrei para uma empresa tradicional de mobiliário alentejano que existiu aqui em Ferreira, para a parte da carpintaria/marcenaria. Depois, quando esta foi extinta, percebi que [junto com a empresa] ia deixar de existir esta arte e, por isso, tomei como responsabilidade assumir esse propósito e criar o projeto HANDMADE”, explica, enquanto mostra a sua peça mais marcante, uma cadeira alentejana que esteve a ser estudada na sua cabeça por 15 anos.

 

Sabendo das suas limitações e da necessidade de modernizar uma arte que, ao nível do comércio, está a viver muitas dificuldades tem dedicado os últimos três anos ao aperfeiçoamento de novas técnicas de empalhamento, novos materiais e design.

 

Pequenas, médias e grandes, as cadeiras alentejanas de buinho são a sua peça característica, contudo Vítor Caço tem olhado para novos mercados. “Estou uma fase de descoberta de novos produtos, como é o caso das cadeiras de baloiço e das caixas multiúsos com esteira de junco, juntando, assim, um novo design às peças tradicionais do nosso território”, refere, apontando para uma das estantes.

 

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“O ARTESANATO É COMO QUALQUER OUTRO TIPO DE SETOR, SE NÃO SE MODERNIZAR ACABA POR FICAR PARA TRÁS E POR SE TORNAR OBSOLETO”

Este é um dos principais problemas que os dois artesãos baixo-alentejanos veem o setor atravessar. A pouca valorização e poder de compra do artesanato pelos locais, em conjunto com a débil estimulação do turismo na região e, em particular, com a falta de divulgação deste tipo de atividades, tem condicionado, cada vez mais, a área e quem nela trabalha.

 

“Dos artesãos que eu conheço, [aqui da zona], não há nenhum que consiga viver somente disto, são todos obrigados a ter sempre outras fontes [de rendimento]. Talvez ali no Alto Alentejo, com a história da loiça que tem uma tradição mais enraizada, haja pessoas que vivem disso, mas não oiço. Aqui, ninguém do Baixo Alentejo pode dizer que vive só do artesanato”, refere Lisete Góis Silva.

 

Vítor Caço concorda: “a maior parte dos artesãos tem de encontrar suplementos, como dar formações ou workshops para sobreviver, [porque], só com o comércio em si, é difícil”. E acrescenta: “o exemplo que eu tenho aqui das feiras e exposições é que todas as pessoas acham muito bonito e pedem para continuar e não parar, mas, depois, isso não se traduz na venda”.

 

Para os dois artesãos a explicação é simples: o artesanato, no geral, não é valorizado em Portugal. A mentalidade que se tem em torno do valor dos produtos e da mão-de-obra acompanha a tendência que se vive noutras áreas, onde o custo de vida não permite “pagar bem” por peças de artesanato, como acontece em outros países.

 

Para Vítor Caço, a solução passará pela modernização do setor, começando, desde logo, por melhorar o design sem retirar a autenticidade característica da região alentejana e pela aposta na venda online. Estas duas inovações permitirão, não só alcançar novos consumidores com poder de compra, como também valorizar os produtos a nível nacional e internacional.

 

Ainda assim, Lisete Góis Silva crê que o panorama “está a melhorar” e que “mesmo as pessoas da terra e da região já começam a dar um bocadinho mais valor às nossas peças”.

 

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“O CENTRO DE ARTES TRADICIONAIS SERÁ O EPICENTRO DO ARTESANATO NO CONCELHO”

Anunciado recentemente pelo município de Ferreira do Alentejo, o Centro de Artes Tradicionais foi acolhido, com muito bons olhos, pelos artesões locais. A reabilitação do antigo edifício do mercado municipal e das suas áreas envolventes arrancou há cerca de três semanas e está a causar grandes expectativas naqueles que serão os seus principais beneficiários. 

 

“O Centro vai ser importante em todos os aspetos e uma mais-valia em todas as suas valências e perspetivas. [Primeiro], começando por nós, artesãos, que teremos um espaço onde pode ser divulgado, no trabalho ao vivo, [a nossa atividade] e onde estarão expostos os nossos produtos [para venda]. [Segundo], para o turismo será um epicentro das artes que temos no concelho e depois vai poder proporcionar, para a população, workshops de artesãos locais, nacionais e quem sabe internacionais”, confirma ao “DA” Vítor Caço.

 

Para o presidente da Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, Luís Pita Ameixa, este será “um polo dedicado ao trabalho e à sua divulgação junto do público dentro e fora do concelho [numa] lógica de valorização do património cultural e de recuperação das artes tradicionais do concelho”.

 

O Centro, que tem um investimento total de cerca de 100 mil euros, financiado em 85 por cento por fundos comunitários, deverá estar permanentemente de portas abertas ao público com exposições, atividades ao vivo e venda de produtos. Esta é, também ela, uma das formas de atrair e fixar turistas que visitam a vila ferreirense durante a semana, mas sobretudo aos fins de semana.

 

Lisete Góis Silva e Vítor Caço são apenas dois dos artesãos que deverão fazer do Centro de Artes Tradicionais de Ferreira do Alentejo a sua segunda casa. O foco é claro para ambos: promover e marcar o que de melhor e tradicional se faz no concelho e na região do Baixo Alentejo, ao mesmo tempo que acompanham as exigências dos tempos modernos.

 

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