Diário do Alentejo

Beja Hostel tem Pax Julia a seus pés

12 de maio 2022 - 14:00
Campanha de arqueologia candidata ao Orçamento Participativo 2022 da autarquia

Um problema nos esgotos do Beja Hostel, uma unidade de alojamento local na Rua Alexandre Herculano, entre as Portas de Mértola e o Largo Engenheiro Duarte Pacheco - onde está situado o Tribunal de Beja - deu origem a uma descoberta arqueológica que pode contribuir para uma melhor compreensão do passado da Pax Julia.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

Estava-se em abril de 2021, em plena pandemia, mas o hostel, apesar da falta de clientes, continuava a funcionar devido a um compromisso com a Segurança Social que garantia estadia temporária a pessoas vulneráveis e ninguém suspeitava que, poucos palmos abaixo do chão, se encontraria tal tesouro.

 

As obras foram avançando no sentido de resolver o problema, mas, segundo António Freire, responsável pelo equipamento, “foram surgindo outros que nos desvendaram mais vestígios arqueológicos”. Para evitar a destruição desses vestígios tiveram de ir alterando o sistema de águas e esgotos. Nesta altura já a obra era acompanhada por técnicos da Direção Regional da Cultura do Alentejo que, desde o primeiro dia, foi informada do estado da arte.

 

Costuma-se dizer que “cada cavadela, uma minhoca”, mas aqui, a cada cavadela, mais um pouco do passado da cidade era revelado. A obra foi continuando e a Câmara Municipal de Beja foi informada. Aliás, desde muito cedo que os vereadores dos vários partidos representados no executivo tomaram conhecimento do empreendimento e manifestaram interesse em ver com os próprios olhos o que as obras estavam a desvendar.

 

Paulo Arsénio, presidente da Câmara Municipal de Beja, Vítor Picado, vereador da CDU e Nuno Palma Ferro, vereador da lista liderada pelo PSD, visitaram o local e o município acabou por apoiar o empreendimento, nomeadamente, com a disponibilidade de viaturas para a remoção do entulho e permissão de ocupação de espaço na via pública.

 

Entretanto, o empresário viu na “contrariedade” uma “possibilidade” e decidiu fazer algo de inovador: “Acho que podemos fazer um projeto único e diferenciador e tornar esta unidade de alojamento local num veículo que desvenda uma parte da história da Pax Julia”.

 

A ideia é abrir as portas do piso térreo a todos que o queiram visitar e expor os achados de forma a poderem ser apreciados. Nos pisos superiores o negócio continuará com o aluguer de quartos, mas a clientela poderá vir a ser outra, mais interessada na temática do local.

Mas nada se faz sem dinheiro. António Freire “gostava que este projeto fosse concretizado com apoios locais”, desde logo as autarquias, mas também empresas públicas e privadas da região.

 

Nem de propósito, o município de Beja anunciou que em 2022, pela primeira vez, o concelho lançará a iniciativa de um Orçamento Participativo. O processo já se iniciou com a aceitação das candidaturas e com a inscrição – terminou a 31 de março – dos eleitores interessados em votar. O projeto do Beja Hostel é um dos projetos de ideias candidatos que se encontram em apreciação e, no final do mês de maio, logo se saberá se será um dos postos à votação.

 

Importa esclarecer que o que foi apresentado a concurso não tem que ver com aquilo que já se descobriu no interior do edifício. O proposto, explica António Freire, é uma intervenção no espaço exterior do edifício de forma a expor os achados e valorizar o espaço público e de cujo processo de candidatura já constam projetos de arquitetura e de estabilidade, bem como estimativas de custo das obras. “A escavação será na linha da fachada do prédio, numa área de 10 metros de comprimento e três metros de largura”, explica o promotor ao “Diário do Alentejo”.

 

Por agora, com a ampliação da área de intervenção no interior, mostrou-se necessário um projeto de estabilidade para o interior que está a ser executado e que será entregue em breve aos serviços camarários para que a obra possa ser retomada.

 

APOIO MORAL

Têm sido muitas as manifestações de apoio recebidas nas redes sociais onde o projeto é divulgado. Uma das últimas foi a de D. Duarte Pio, Duque de Bragança, que, por ocasião da visita à Ovibeja, se deslocou ao espaço onde António Freire e o arqueólogo André Donas-Boto tiveram ocasião de explicar “o que provocou esta intervenção, a evolução dos trabalhos e o objetivo do projeto”.

 

O pretendente ao trono de Portugal manifestou a sua solidariedade à família promotora do projeto e destacou a importância do empreendimento “na proteção deste valioso património da cidade de Beja”.

 

Jorge Feio, visita habitual do local, perante estas descobertas, considera que “Beja é um monstro adormecido que tem de ser acordado”. O arqueólogo da Câmara Municipal de Beja diz que nos achados, “para além dos testemunhos da época Romana”, merecem destaque “os vestígios da fase de transição entre o período visigótico e a fase inicial da ocupação islâmica e ainda dos séculos X, XI e XII”.

 

Também os humoristas Bruno Ferreira e Jorge Serafim deixaram mensagens de apoio. O primeiro classifica o projeto como “contra a corrente de desinteresse” que infelizmente se assiste; e o segundo disponibilizou-se para pôr a sua arte ao serviço da causa. Recentemente, o professor Florival Baiôa também fez uma visita ao espaço com alunos de História da Escola Secundária Diogo Gouveia, de Beja, considerando que o projeto é “um importante espaço de atração turística” para a cidade.

 

“MAIS-VALIA PARA A QUALIFICAÇÃO PATRIMONIAL DA CIDADE”

O “Diário do Alentejo” teve acesso a um “parecer resumido” sobre o projeto da autoria da arqueóloga Maria Conceição Lopes, especialista no período romano e com vasto trabalho desenvolvido no concelho de Beja. A também professora auxiliar da Universidade de Coimbra diz que, devido ao seu “interesse em verificar o que se passa na transformação das casas de Beja”, foi com “todo o descaramento” que entrou na obra sem ser convidada. Naquele momento deparou-se “com algumas evidências arqueológicas, materiais e estruturas que pela sua tipologia, estado de conservação e lugar onde estão implantadas merecerem a minha mais particular atenção, dada a riqueza com que contribuem para o conhecimento e  o património de Beja”. Para a arqueóloga “trata-se de estruturas ainda bem conservadas, com evidências  de pertencerem a  um dos complexos termais públicos da cidade de Beja em tempo dos romanos, Pax Iulia e, no seguimento da dinâmica da cidade, a uma estrutura de armazenamento em talha, cujo período parece reportar a várias épocas”. Depois, já na presença de António Freire, percebeu que era vontade do dono da obra “preservar tão importante complexo arqueológico integrando-o no seu projeto” e ficou agradada com isso. Face ao observado, concluiu que “além do “castelo de água” de receção e distribuição de água, praticamente intacto e com restos da abóbada de pedra, de outras estruturas de captação aprovisionamento de água intactas e  vários muros e pavimentos do(s) período(s) romano, existem importantes  estruturas de armazenamento do período moderno/contemporâneo. Sou de parecer  que a importância científica, patrimonial e de qualificação patrimonial da cidade (a segunda mais importante da Lusitânia) se torna absolutamente indispensável”. No entanto, reconhece que a “preservação in loco dos bens patrimoniais implica gastos a que as instituições públicas deveriam atender, participando ativa e empenhadamente na captura de financiamentos para a valorização desta infraestrutura de acolhimento”, e realça que este empreendimento “se apresenta como uma mais-valia para a qualificação patrimonial da cidade e, nessa medida, como estrutura de atração de turismo de qualidade à cidade”.

 

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