Diário do Alentejo

Compostagem não é para todos

06 de abril 2022 - 14:20
Lei ainda privilegia fábricas de bagaço de azeitona, em desfavor da agricultura circular

Sem solo não há agricultura. A compostagem de subprodutos resultantes das atividades agrícolas – uma prática milenar – mais não é que um processo em que se pretende devolver terra à terra. Como diz a moda: Eu devo meu corpo à terra / A terra me está devendo / A terra paga--me em vida / Eu pago à terra em morrendo. No caso, as ramagens, o bagaço de azeitona, o engaço da uva ou a palha, entre outros produtos, depois de terem nascido e contribuído para as diversas produções, após serem cortados, em vez de serem queimados ou postos de lado, voltam ao solo para o preservarem e revitalizarem.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

Numa altura em que o preço dos fertilizantes no mercado mundial está em alta e descontrolado, a compostagem aparece não só como uma alternativa económica, mas também amiga do ambiente e guardiã da qualidade dos solos e das reservas aquíferas. Mas, no caso do bagaço de azeitona, é mais do que isso: como se viu na campanha anterior, com o aumento da produção olivícola, este subproduto da azeitona tornou- se um problema difícil de gerir pelas unidades industriais instaladas na região.

 

A compostagem pode ser a resposta para este problema, mas o Novo Regime Geral de Gestão de Resíduos (Nrggr) impede os agricultores de utilizarem o bagaço de azeitona nas suas unidades de compostagem, dando às fábricas, na prática, a exclusividade para o fazerem. A EDIA disponibilizou recentemente o Manual de Compostagem – uma encomenda do Ministério da Agricultura que contou com o contributo do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária – com a intenção de clarificar procedimentos que permitam uma alteração na lei que permita um setor agroindustrial “mais responsável e sustentável”.

 

David Catita, técnico da EDIA responsável por este dossiê, lamenta que “na verdade, os agricultores não possam fazer compostagem de todos os seus subprodutos orgânicos”, devido a uma caracterização na lei e que distingue os materiais entre subprodutos e resíduos.

 

No caso do bagaço de azeitona (azeitona moída), se for para uma unidade industrial de queima e extração de óleo, é considerado um subproduto; mas se for para a compostagem é considerado um resíduo o que obriga a um licenciamento como operador de resíduos para o seu tratamento “como se as pessoas estivessem a lidar com materiais perigosos”, explica David Catita, defendendo que “a compostagem é uma nova atividade de criação de valor na exploração agrícola” e, como tal, uma mais-valia, bem diferente da abordagem das bagaceiras, que o tratam como um resíduo que precisa de ser eliminado.

 

O técnico da EDIA defende, que tal como aconteceu com a compostagem doméstica, devem ser definidas Regras Gerais para a compostagem agrícola, isentando esta técnica de licenciamento complexo, como definido nos termos do Artigo 66 do Nrggr e o manual agora publicado pode ser o primeiro passo para isso. Em 2019, foi criada em Serpa, na Herdade da Abóboda, em parceria com a Direção Regional de Agricultura do Alentejo, a primeira unidade de compostagem da EDIA, demonstrando, assim, “que a valorização orgânica é possível e a produção de composto é uma mais-valia na fertilização agrícola e no desempenho ambiental da agricultura”, importando restabelecer o potencial do solo como filtro da natureza e assim também ter uma melhor água neste território.

 

Neste momento, informa David Catita, estão assinados 18 protocolos com vários operadores agroindustriais do território de Alqueva para a criação de outras unidades de compostagem e que, em laboração, poderiam resolver uma parte do problema resultante da transformação do bagaço de azeitona, “reduzindo a pegada ecológica associada ao transporte dos subprodutos e assim aumentar o desempenho ambiental de todo o processo”.

 

O manual agora disponibilizado online “pretende ser mais um passo num território equipado com uma constelação de unidades de compostagem em rede, dispersas pelo território agrícola, que possibilite a aproximação dos agricultores à solução de compostagem preconizada e potencie o seu efeito regenerador da qualidade do solo e também da qualidade da água.” Lê-se nas linhas finais que “Não é possível advogar uma abordagem baseada na sustentabilidade e no uso eficiente de recursos e simultaneamente permitir que as vias menos sustentáveis sejam as mais fáceis, levando a que muitos as sigam, e assim não se opere a verdadeira mudança de paradigma, da linearidade para a circularidade, que exige o envolvimento de todos”.

 

COMBATE À DESERTIFICAÇÃO

O combate à desertificação “não se faz com água, mas sim com melhores solos, mais ricos em matéria orgânica e vida”, com o fito numa agricultura mais sustentável e eficiente, integrada num ecossistema cada mais resiliente e em harmonia com a atividade agrícola. A utilização de composto orgânico nos solos não é uma novidade. É algo que existe desde tempos imemoriais e “faz parte do processo agrícola” que completa o ciclo dos materiais. Aquilo que distingue a compostagem do “processo natural de degradação da matéria orgânica é a intervenção humana através da alteração adequada dos diversofatores relevantes, desenvolvendo técnicas que permitem acelerar o processo de decomposição e proporcionar a obtenção de um material de elevada qualidade” para utilização nos solos, lê-se no manual.

 

Na União Europeia (UE), produzem-se anualmente, entre 118 e 138 milhões de toneladas de biorresíduos, mas menos de metade (40 por cento) são transformados em composto orgânico e Portugal ocupa o último lugar no que diz respeito à produção per capita. No entanto, a Diretiva de Resíduos da EU diz ser fundamental “desviar os resíduos orgânicos dos aterros e de processos de eliminação, garantindo que as matérias-primas secundárias de alta qualidade (compostos e digeridos) sejam processadas de forma consistente para que possam ser colocadas no mercado europeu de fertilizantes” e diversos documentos nacionais sobre o planeamento estratégico caracterizam a compostagem como uma “técnica de valorização de materiais orgânicos e criação de fertilizante orgânico para o solo”.

 

“As unidades de compostagem devem ser encaradas como verdadeiras fábricas de terra, capazes de devolver solo ao solo e assim aumentar a sua qualidade e quantidade. Promover a conservação do solo e, em simultâneo, acrescentar riqueza ao solo é possível, desde que se consigam recircular os elementos, já estabilizados, que não representam o produto final da atividade agrícola. A compostagem será o caminho”, defende a EDIA.

 

PROJETO URSA

As unidades de recirculação de subprodutos de Alqueva, tem como objetivo a criação de várias unidades pelo território rural, para que agricultores e industriais possam entregar materiais orgânicos e, em troca, receber composto para aplicação no solo, complementando a fertilização agrícola. É assim possível “criar valor onde antes existia um custo”. A rama, as folhas, as palhas ou os bagaços, que representam mais de 80 por cento da quantidade de produtos agrícolas, assumem, assim, “um valor inédito equiparado ao valor dos nutrientes minerais importados, o que transforma uma vasta gama de subprodutos classificados como resíduos, em matérias-primas valiosas e totalmente incorporáveis no processo agrícola, ainda para mais com vantagens ambientais a longo prazo decorrentes desse processo”. O objetivo é criar pelo menos 12 unidade – uma por cada 10 mil hectares – de forma a garantir proximidade das explorações agrícolas para reduzir a pegada ecológica resultante do transporte dos materiais e facilitar a entrega de subprodutos em troca de composto para fertilização agrícola.

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