Diário do Alentejo

O outro lado do palco

23 de março 2022 - 15:50

A peça “A Lua é a Lua em Buenos Aires e Lisboa” esteve em exibição no Teatro Municipal Pax Júlia, em Beja, até ao passado dia 11 de março e o “Diário do Alentejo” acompanhou os preparativos da mesma*.

 

 Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

O conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, o trânsito e o tempo são alguns dos temas de que se vai falando na pequena sala de espetáculos do Teatro Municipal Pax Júlia, em Beja, onde o cenário da peça “A Lua é Lua em Buenos Aires e Lisboa”, da companhia de teatro Lendias d’Encantar, está a ser montado.

 

Enquanto perde a conta ao número de vezes que sobe e desce do andaime para colocar no teto mais um dos 32 projetores de luz que farão “magia”, Ivan Castro, diretor técnico de som e luz da companhia, conta ao “Diário do Alentejo” que atualmente esta é composta por 10 pessoas, que “são poucas” em termos de sobrecarga de trabalho. Ainda assim, Ana Rodrigues, cenógrafa, remata “poucas? para uma companhia no Baixo Alentejo somos muitos até, nós já fomos só quatro pessoas”.

 

O sentimento de trabalhar diariamente para manter viva uma companhia de teatro no interior do país é uma tarefa difícil, “há menos artistas, menos atores, menos encenadores, menos cenógrafos, menos técnicos, menos público, menos hábitos culturais e menos experiência cultural e artística”, lamenta o diretor artístico e ator de Lendias d’Encantar, António Revez, ao mesmo tempo que esboça um sorriso assegurando que ainda assim “é aliciante tentar contrariar isso” desde 1998, ano em que a companhia profissional de teatro se fundou.

 

O público é, também ele, uma incógnita, o hábito de “prender” espectadores durante uma encenação é outra faina. Para Belén Pasqualini, autora e atriz da peça em exibição, uma pessoa “que não tem hábitos culturais entra em ‘jogo’ sem julgamentos quanto à convenção do teatro”, “vai ver a peça porque teve conhecimento e simplesmente foi e depois age com espontaneidade”, completa António Revez, “ainda assim um público silencioso não é propriamente um público menos atento”.

 

“Por exemplo, em Aljustrel, na primeira sessão do espetáculo “A Lua é Lua em Buenos Aires e Lisboa”, achei que a maioria das pessoas que estavam a assistir à peça não eram habituais frequentadores de teatro, ou de cultura, então não tinham expectativas, o que é bom. Por isso permitiram-se mais ao que nós estávamos a passar, tornaram-se um público predisposto e com desejo e vontade de lá estarem. Creio que se divertiram e tiveram um bom momento”, confessa a dramaturga argentina.

 

O fundo negro da sala começa aos poucos a contrastar com os panos azuis que formam a sauna, onde as duas personagens completamente desconhecidas aos olhos uma da outra se vão encontrando e percebendo que é mais aquilo que as une do que o que as separa. A fama, a pressão social e mediática, o real e o artificial, o genuíno e a construção, o valor atrativo e o sensual e até a solidão são alguns dos temas pelo qual Belén Pasqualini e António Revez conduzem as suas personagens durante os 60 minutos do espetáculo.

 

“A peça acaba por falar nisso, de duas pessoas que não se conhecem e que são obrigadas a partilhar o mesmo espaço e que aos poucos vão descobrindo o outro, vão descobrindo que se calhar são mais as semelhanças do que as diferenças entre eles. Ainda assim, o espetáculo fala de várias coisas, mas eu acho que o mais interessante é haver pessoas do público que não se vão sentir sensibilizadas por nada disto que eu estou a dizer e que vão sair sensibilizados por outra coisa qualquer e isso é o que eu acho que é bom no teatro”, realça o também diretor artístico do FITA – Festival Internacional do Teatro do Alentejo.

 

O silêncio por vezes enche e ecoa a sala, fruto da concentração, do cuidado e do pormenor, junto com o entusiasmo e ansiedade para que chegue a próxima sessão. Em determinadas alturas esse silêncio é quebrado pelo som de um parafuso que cai, de um telemóvel que toca, de uma fita-cola que se rasga ou de um banco que é empurrado delicadamente para não riscar o chão.

 

Por detrás deste espetáculo, que levou cerca de dez meses a estar de pé, estão centenas de horas a “bater texto”, por vezes até em mesas de café, e outro número infindável de horas de montagem e desmontagem de cenários. Surgem imprevistos que atrasam e deixam quem está no terreno com os nervos à flor da pele. Desta vez, foi a falta de espaço para colocar um foco de luz que seria uma porta. Aqui, o perfecionismo e o realismo têm de estar de mão dadas, caso contrário “a porta deste ângulo fica estranha, não tem lógica com a luz de cima e vai ficar patético”, ouve-se. Enquanto se decide a melhor solução para este problema, os panos de fundo azul são esticados, as fitas para o duche endireitadas e o piano, os chinelos, os roupões e as quatro toalhas vermelhas, colocados no sítio.

 

Estas duas cores complementares, o azul e o vermelho, começam discretamente a sobressair de entre o preto do auditório. Também elas um reflexo da mistura entre a cultura portuguesa e a argentina, dos atores e das suas personagens. O azul tipicamente português, presente nas barras das casas do Alentejo, nos azulejos e nos bordados à mão, o vermelho tradicionalmente chamativo da Argentina e dos seus mosaicos. O banco, ainda que discretamente tapado pelo pano azul da sauna, é outro dos pormenores que liga os dois países.

 

Aos poucos, a sala, que antes estava completamente despida, começa a compor-se. O som do piano deixa antecipar o que nos espera enquanto público. As toalhas voltam a ser dobradas com cuidado, uma a uma. As caixas, já vazias, são empilhadas junto às paredes para depois seguirem para a carrinha e os fios que anteriormente estiveram espalhados pelo chão começam a ser guardados. Falta ainda montar o som, os microfones e testar as luzes que serão vistos e revistos horas antes de qualquer espetáculo. O cansaço e o nervosismo começam a aparecer. Nervosismo, este, não só pelas sessões que ainda vêm ai, mas também pela apreensão do que este novo ano artístico trará.

 

“Primeiro, esperemos que esta situação melhore, que se ponha um ponto final e que se passe um atestado de óbito à pandemia e que efetivamente isto acabe. Depois, gostaríamos muito de poder concretizar o plano de atividades definido desde o ano passado, com a digressão internacional e as coproduções”, revela o ator. Contudo, António Revez diz ser ainda difícil de perceber que consequências, negativas ou positivas, a pandemia trouxe na relação entre o teatro e o público, mas adianta: “se já era difícil levarmos as pessoas para determinado tipo de espetáculos ou eventos culturais, como as artes plásticas, a música clássica, o bailado e o teatro, as pessoas após terem adquirindo outro tipo de hábitos [durante a pandemia] não sei se não vão resistir ainda mais agora”.

 

Belén Pasqualini, ainda assim, garante que, apesar de estar “de fora”, percebeu “que as pessoas aqui são cultas, que querem que passem coisas, querem mais eventos culturais” e “estes dois espetáculos que fizemos foram bons a este nível, era ótimo que se mantivesse esta afluência de público, mas são só duas atuações, não sei se o comportamento do público se irá manter assim ou não”, completa o diretor de Lendias d’Encantar.

 

O próximo espetáculo já espreita. As luzes estão prontas para se acenderem e as 50 cadeiras da sala estão já preparadas para receber um público “ressacado” de teatro e cultura que precisa de se esquecer do conflito, do trânsito e do tempo por uma hora e viver as duas personagens de “A Lua é a Lua em Buenos Aires e Lisboa”.

 

(*O artigo foi publicado na edição nº2081 a 11 de março 2022)

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