Diário do Alentejo

Associação B. Mira quer cortar acesso da água a precários

02 de março 2022 - 10:42

No início do ano, a Associação de Beneficiários do Mira (ABM) fez chegar aos utilizadores precários da água do perímetro de rega uma carta em que informava cerca de uma centena de pequenos proprietários que só teriam acesso a este recurso fundamental em 2022 se se comprometessem a arranjar uma solução alternativa para 2023.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

"Com a formalização da inscrição na campanha de 2022, considera-se que V. Exª assume o compromisso de, até ao final do ano de 2022, promover uma solução alternativa à captação instalada, assumindo o compromisso de remoção da captação existente até essa data”, lê-se no documento a que o “Diário do Alentejo” teve acesso.

Acresce que a aceitação deste pressuposto era obrigatória para quem quisesse ter acesso à água este ano e informava que os custos com a remoção da captação seriam “suportados pelo utilizador”.

 

Fátima Teixeira do Juntos Pelo Sudoeste (JPS) considerou a posição da ABM “inqualificável” e classificou-a como “chantagem pura”. A dirigente ambientalista local criticou também a exigência da assinatura de um contrato sem a prévia informação do preço a pagar e a cláusula em que os utilizadores permitiam que a associação gestora da água suspendesse ou revogasse do acordo de forma unilateral “sem necessidade de justificação e/ou fundamentação”.

 

Piedade Guerreiro, 51 anos, vive há 36 no Monte Corte de Enchária, entre São Teotónio e Sabóia, com a restante família. Com a água que obtém no canal – a cerca de mil metros da propriedade – rega 10 hectares de milho e prado para alimentar cerca de 40 vacas e meia dúzia de bezerros.

 

“Eles foram tirando água e as culturas de verão terminaram. No ano passado, como disseram que não havia água para regar a horta para consumo próprio, ficou pendente”, acusa a agricultora que diz ter ido este ano “fazer a inscrição”, mas não a terem deixado.

“Se me tirarem a mangueira é como se me metessem uma corda ao pescoço. Se temos seca não deixem fazer mais estufas”, reclama Piedade Guerreiro que diz que sem água “é melhor vender as vacas e ir viver para outro sítio”.

 

Há algumas semanas, a Câmara Municipal de Odemira e as juntas de freguesia com população afetada pelo problema reuniram com a Associação de Beneficiários do Mira. Hélder Guerreiro, presidente da autarquia, disse ao “Diário do Alentejo” que desse encontro saiu “um acordo para durante este ano, entre todos, se fazer um levantamento para perceber quantos são e quais os modelos de abastecimento”.

 

O presidente da Câmara de Odemira calcula que existam cerca de duas centenas de utilizadores precários e que 160 não tenham acesso ao abastecimento público e é para estes que é urgente encontrar uma solução.

 

Neste momento prosseguem as visitas aos locais e o levantamento das necessidades, mas o autarca garante que “o abeberamento dos animais nunca será posto em causa”.

 

Mas não é apenas a atividade agrícola que está em causa. Algumas unidades de turismo rural e casas particulares também são atingidas pelo problema. As piscinas correm o risco de ficar secas este ano porque os poços que fizeram para as abastecer estão a ficar secos e mal dão para regar os jardins. Acresce que alguns poços apresentam teores de nitratos muito superiores ao permitido por lei devido à contaminação dos lençóis freáticos.

 

Fernando Guerreiro, presidente da Junta de Freguesia de Saboia, em declarações recentes, revelou que só naquele território existem duas dezenas de pessoas em diversos montes que necessitam que se lhes leve, mensalmente, cinco mil metros de água para o uso doméstico e animal. A situação é semelhante nas freguesias de Santa Clara-a-Velha e Luzianes, onde os poços também estão secos e para encontrar água é necessário furar cada vez mais fundo.

 

A distribuição de água canalizada no concelho – que tem uma área de cerca de 1700 quilómetros quadrados – não chega a um terço da população, mas o presidente da Câmara Municipal de Odemira reconhece não ser “possível levar água canalizada a todos” devido aos custos que isso acarretaria. O autarca admite que não há garantia de água para a campanha de 2022 e, por isso, questiona se faz sentido “continuar a deixar crescer a área agrícola”, que no concelho é predominantemente de estufas de frutos vermelhos, e reclama um “forte investimento” para reduzir as perdas de água que andam entre os 30 e 40 por cento.

 

O movimento Juntos Pelo Sudoeste considera que o modelo de agricultura intensiva existente no local não é aquele que é necessário. “Não respeita as especificidades e sensibilidades da região, privilegia longas cadeias de distribuição” e não devolve ao território qualquer desenvolvimento ou evolução e põe em causa o futuro do Parque Natural da Costa Vicentina.

 

Questionada pelo jornal “Expresso”, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, reconhece que o volume de água assegurado para os pequenos agricultores é apenas de mil metros cúbicos por ano e que se destinam à “rega das hortas familiares e abeberamento de gado”.

No entanto, quando questionada, sobre a expansão do regadio disse que para “decisões futuras” foi efetuado o estudo “Regadio20/30” e que existem 500 mil euros do PDR 2020 para a ABM “definir uma estratégia para aumentar a eficiência na distribuição de água”.

 

MEIO SÉCULO DA ABM

A Associação de Beneficiários do Mira foi constituída em abril de 1970 e fará este ano 52 anos. Os seus estatutos estabelecem que é “é uma organização sem fins lucrativos, tutelada pelo Ministério da Agricultura”, cujo objetivo é “a gestão, exploração e conservação de dois aproveitamentos hidroagrícolas: o Aproveitamento Hidroagrícola do Mira e o Aproveitamento Hidroagrícola de Corte Brique”. Para isso, a ABM deve “disponibilizar água, em quantidade e qualidade aos beneficiários dos aproveitamentos hidroagrícolas, efetuar a gestão das estruturas, equipamentos e pessoal afetos aos aproveitamentos hidroagrícolas” e assegurar “a conservação e manutenção das estruturas e equipamentos”. Nos órgãos sociais estão representadas grandes empresas da região como, por exemplo, a Campotec, Agrobrejão, Sousa Prado & filhos e Vitacress, entre outras.

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