Diário do Alentejo

O orgulho e o prazer de cantar à alentejana

07 de dezembro 2021 - 17:15

O grupo coral Os Moços do Penedo Gordo começou a sua história em 2018. Ensaiados por João Costa, o rancho de cantadores é constituído por jovens que aliam à responsabilidade de representar o cante alentejano o prazer de o cantar em comunhão.  Tiveram a sua primeira apresentação televisiva, ao lado do humorista Ricardo Araújo Pereira, aquando da vinda do programa "Isto é Gozar com Quem Trabalha". Participaram, recentemente, no desfile comemorativo, em Beja, do sétimo aniversário do cante alentejano como como Património Cultural e Imaterial da Humanidade da Unesco.

 

Texto José Serrano

 

Se passar, às sextas-feiras à noite, pela aldeia de Penedo Gordo, freguesia rural do concelho de Beja, muito provavelmente escutará, ecoando nas paredes das casas caiadas de branco, o som inconfundível do cante alentejano. A probabilidade aumentará se, a pé, passear pela Miguel Fernandes, rua onde se situa a Casa do Povo da terra que alberga, desde há três anos, no final de cada semana, o ensaio do Grupo Coral Os Moços do Penedo Gordo.

 

É ali que, estrategicamente ordenados em duas ou três filas, os quase vinte cantadores do grupo, ensaiados por João Costa, treinam as várias modas do seu reportório, todas elas pertencentes ao cancioneiro popular da região. Ali, o Cante que se ouve é o tradicional alentejano, à capela, sem instrumentos a acompanhá-lo, começando o ponto a moda, seguido do alto, que prepara a ponte para, em uníssono, entrar todo o grupo. Uma torrente de voz unificada, melódica e orgulhosa, como que nascida lá no fundo “desta nossa alma alentejana”, declara um dos moços cantadores. Moços cujas idades vão dos 16 aos 30 anos, a maioria estudantes, alguns trabalhadores, que desde 2018, comparecem, regra geral, com pontualidade ao combinado: “Os miúdos vão quase sempre todos. São cumpridores, é muito raro alguém faltar aos ensaios de sexta-feira. Às oito e meia [20:30 horas] lá estão eles, na Casa do Povo, alegres e brincalhões – elétricos –, antes do ensaio começar, porque depois de ‘porem a boina’, concentram-se totalmente no ato de cantar. Sentem a responsabilidade”, diz o mestre ensaiador.

 

Esta comparência semanal, quase sempre total, só raramente é diminuída, como consequência de uma ou outra nota escolar negativa, que conduz à não entrega do salvo-conduto aos cantadores prevaricadores: “Os pais, naturalmente, às vezes castigam os filhos, quando estes tiram más notas na escola, e não os deixam ir ao ensaio. Da minha parte sublinho sempre que em primeiro lugar estão os estudos e depois é que está o cante e que é possível, sem grande dificuldade, conciliar as duas atividades sem prejuízo de nenhuma”.

 

A penitência, impeditiva de estar presente no ensaio, será, com certeza, muito incómoda para o castigado, a contar pelas descrições dos moços acerca da relevância desses dias únicos na semana: “é um dia de felicidade”, diz um, “um dia de excelente convívio”, refere outro, “um dia em que a malta está toda junta a fazer o que gosta – cantar”, expõe um terceiro, “um dia de bastante importância, pois com só com bons ensaios é que conseguimos dar bons espetáculos”, realça um outro mais.

 

Espetáculos que enchem de orgulho os habitantes de Penedo Gordo, de onde metade dos elementos é, embora ao grupo pertençam também cantadores vindos de Beja e da freguesia de Nossa Senhora das Neves: “o grupo tem tido um impacto muito positivo nos habitantes da aldeia. Assistem às atuações que damos na freguesia e acompanham-nos, muitas das vezes, quando temos espetáculos fora. Toda a gente está encantada e sente orgulho nestes moços”, diz João Costa. O ensaiador, motorista de profissão do Hospital de Beja, é, desde há muito, músico amador, pertencendo a várias formações musicais.

 

Foi precisamente após a exibição de uma destas formações a que pertence, Vozes do Sul – onde canta e toca ‘carron’ (instrumento de percussão) –, que se cruzou no caminho destes rapazes que agora ensaia: “fomos tocar ao Penedo Gordo e um grupo de sete ou oito miúdos veio ter comigo, depois do espetáculo. Disseram-me que gostavam de poder formar um grupo coral, mas que precisavam de alguém que os ensinasse a cantar em grupo. Percebi que havia ali uma vontade muito genuína, um desejo muito grande de cantar à alentejana. Convidaram-me para seu ensaiador”, recorda. Uma semana depois estava na Casa do Povo do Povo do Penedo Gordo a distribuir-lhes letras de modas do cancioneiro alentejano: “eles sabiam as mais conhecidas e eu fui incorporando outras, menos cantadas, que eles desconheciam. Esse revelar do cancioneiro foi, para eles, como que um despertar, ficando ainda mais interessados na função. Há que progredir nesse conhecimento e no saber cantar qualquer moda, as mais fáceis e as mais complicadas, com alma e gosto”.

 

Hoje, três anos depois desse episódio, que marca a génese do grupo, e de muitas novas entradas o ensaiador realça a evolução dos moços cantadores, explicada por João Costa pelo trabalho desenvolvido com aprumo, pela consciência de pertencer, ativamente, como agente preservador deste Património Cultural Imaterial da Humanidade e pelo “enorme prazer, notório, que têm em cantar em grupo”. Atitudes dignas, refere, “de verdadeiros cantadores”.

 

A este respeito, evolutivo, o mestre fala ainda da importância e da responsabilidade da partilha de palco, em vários espetáculos, com verdadeiros “pesos pesados” do cante, recordando a esse titulo um episódio marcante: “Em Castro Verde, num encontro de grupos corais, fazíamos parte do programa, em conjunto com os Ganhões, que são de lá da terra, e com Os Mineiros de Aljustrel, duas lendas do cante. Eu disse ao grupo que tínhamos de ter atitude, que tínhamos de nos ‘jogar para a frente’. A verdade é que, depois de cantarmos “As Mondadeiras”, o “Castelo de Beja” e terminarmos a atuação com o “É tão grande o Alentejo”, eu vi pessoas a chorar. O público de pé a oferecer-nos uma enorme ovação. Emocionei-me muito…”.

 

De ovação em ovação chegamos à mais recente, dada ao grupo no Teatro Municipal Pax Julia, numa atuação inusitada onde o Cante alentejano se aliou ao humor de Ricardo Araújo Pereira, no programa da SIC, “Isto é Gozar Com Quem Trabalha”, gravado ao vivo, em Beja, no passado domingo. Um convite que resultou na primeira apresentação televisiva dos Moços do Penedo Gordo, visualizada por mais de um milhão de espetadores e que contribuirá, “não tenho dúvidas, para que surjam mais convites para atuações”, diz João Costa.

 

A última realizou-se no dia 27 de novembro, em Beja, no desfile de grupos corais que assinalou o sétimo aniversário da elevação pela Unesco do Cante Alentejano como Património Cultural e Imaterial da Humanidade. Mas, em todas as sextas-feiras, é certo que se ouvirá o Cante alentejano, pela noitinha, nas ruas de Penedo Gordo, orgulhoso e distinto nas vozes dos seus moços, amplificado na cal que protege o casario.

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