Diário do Alentejo

“Códice Fáctico de Cartas Régias” regressou a Beja

19 de maio 2021 - 11:10

Já está na posse da Câmara Municipal de Beja o “Códice Fáctico de Cartas Régias”, um conjunto de documentos manuscritos datados de entre 1623 e 1806. Desde 2019, quando foram apreendidos pela Polícia Judiciária (PJ) na sequência de dúvidas levantadas pela autarquia acerca da propriedade do espólio, que se esperava este desfecho. Os documentos ficarão depositados no Arquivo Distrital de Beja, onde, no futuro, será possível consultá-los no âmbito de trabalhos de investigação.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

O padre José Maria Ança [1865-1926] foi, presumivelmente, quem levou de Beja para Ílhavo, em finais do século XIX, o “Código Fáctico de Cartas Régias”, localidade onde se encontrava na posse da sua família até a PJ o ter resgatado, em finais de 2019. O sacerdote viveu grande parte da sua vida em Beja, tendo ocupado vários cargos de relevo, nomeadamente, vice-reitor do seminário, reitor do liceu, provedor da Santa Casa da Misericórdia e presidente da Câmara.

 

Há cerca de dois anos os seus herdeiros desenvolveram esforços para a venda do códice, junto do Arquivo Nacional da Torre do Tombo que, depois de o analisar, concluiu que aqueles documentos pertenciam à Câmara de Beja, tendo disso informado a família que os tinha em sua posse, bem como o Arquivo Distrital de Beja.

 

A autarquia bejense – que havia sido sondada pela família no sentido de comprar o códice em 2018 - contactou a Procuradoria-Geral da República que pediu a intervenção da PJ, que apreendeu os documentos.

 

Rosa Mendes, uma das responsáveis da Torre do Tombo que analisou o espólio considera-o “importante para a cidade” pois “permite fazer um retrato das pessoas mais influentes daquela época e das suas propriedades”. Em declarações ao “Diário do Alentejo”, explicou que os documentos “dão orientações de vários aspetos da cidade, desde o cruzamento de cargos às feiras, da movimentação de tropas aos preços dos cereais, ou ao provimento de cargos da administração”. Estes documentos, que cobrem cerca de 200 anos, “dão-nos a conhecer a vida daquele espaço físico e das pessoas que nele habitavam”, conclui Rosa Mendes.

 

O passo seguinte para a confirmação da autenticidade do património em causa foi dado no Laboratório Nacional da Polícia Científica. Ana Assis, técnica deste laboratório, observou que “o papel era feito de trapos velhos”, com fibras de algodão, linho e cânhamo e a tinta foi produzida com sulfato de ferro e goma-arábica, “mas a composição variava: umas têm mais ferro, outras menos, mais ou menos diluídas”.

 

Na semana passada, numa nota distribuída à imprensa, Manuel Dores, procurador coordenador da Comarca de Beja explicou que “não foi possível determinar, em concreto, as circunstâncias da apropriação dos documentos, nem a sua autoria, havendo indícios de que a mesma tenha ocorrido, há pelo menos, três gerações” e decidiu pela entrega do espólio à Câmara de Beja, o que já foi concretizado.

 

Em outubro de 2019, o presidente da autarquia, Paulo Arsénio, revelou que, no final de 2018 a família do antigo sacerdote propôs vender o códice por 20 mil euros, mas, na altura, a decisão foi a de não comprar por haver dúvidas quanto à sua autenticidade.

 

169 DOCUMENTOS MANUSCRITOS

 

Em causa está um códice com 169 documentos manuscritos entre 1623 e 1806 – do reinado de Filipe III ao de D. Maria I – com cartas originais assinadas pelo rei, pelo príncipe, pelo infante e pela duquesa de Mântua (Margarida de Sabóia), enviadas a figuras ilustres da cidade de Beja.

 

De acordo com a autarquia, “o município bejense recupera, assim, um conjunto de peças de importante valor histórico que contribuirão para melhor compreender as relações institucionais entre a Chancelaria Régia e os diferentes órgãos políticos, administrativos e judiciais do concelho”.

 

Paulo Arsénio, em declarações ao “Diário do Alentejo”, não escondeu o seu contentamento com a recuperação do códice e anuncia que, para já, será depositado nos serviços da Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (Cimbal), que dispõe de capacidade técnica para digitalizar, um a um, todos os documentos. Depois será entregue à guarda do Arquivo Distrital de Beja, onde poderá ser consultado no âmbito de trabalhos de investigação história. No entanto, o presidente da Câmara pretende que seja possível “organizar uma exposição com parte dos documentos” e mostrá-los ao público em geral.

 

“Este foi um assunto que suscitou muito interesse por parte da comunicação social” o que parece ter criado muita curiosidade na generalidade das pessoas, diz Paulo Arsénio, que também não exclui a hipóteses de os documentos, no futuro, poderem ser consultados ‘online’.

 

CÓNEGO, PROVEDOR E PRESIDENTE DE CÂMARA

 

José Maria Ança nasceu na freguesia da Fontoura, em Ílhavo, a 22 de março de 1865. Em 1905 foi colocado como cónego da Sé de Beja e pároco da igreja de S. João Baptista. Foi comendador da Ordem de Nossa Senhora da Conceição e, no Seminário de Beja, professor e examinador pro-sinodal, tendo lecionado várias cadeiras a pedido do dispo D. António Xavier. Para além da sua atividade religiosa, exerceu cargos políticos, nomeadamente, o de presidente da Câmara. Paralelamente, escrevia em vários jornais, quer da sua terra de origem, quer na “Folha de Beja”, onde publicava poesia. “O Bardo Católico”, “Expanções d'Alma” (em 1891 com prefácio de Cândido de Figueiredo), “Sonetos e Líricas” e “Poema da Juventude” (1895), são algumas das obras conhecidas. Nos anos que antecederam a instalação da República, José Maria Lança entrou em “choque” com o então bispo de Beja, D. Sebastião de Vasconcelos e retirou-se para a Ílhavo.

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