Diário do Alentejo

Publicadas em livro 300 cartas de Fialho de Almeida

06 de maio 2021 - 11:00

 “Fialho de Almeida – Correspondência (1877-1911)”, da historiadora Emília Salvado Borges, reúne 300 cartas escritas por Fialho de Almeida e 73 por ele recebidas, acompanhando toda a vida e obra do escritor. Autora do prefácio, Annabela Rita diz que a obra “deixa-nos ver um autor em diálogo, numa pose variando com o destinatário, com as circunstâncias, com o grau de familiaridade, com o objetivo, com os interesses, enfim, com a espuma dos dias"

 

Texto Luís Godinho

 

"Os dois artigos políticos que publiquei no Correio foram aqui transcritos pelos jornais de Lisboa e Porto, e também pelos revolucionários, com a respetiva campanha de insultos, a que, de resto, desde longos anos estou acostumado, e já não me faz impressão". Escrita na última quinzena de janeiro de 1911 e dirigida ao "Correio da Manhã", jornal que se publicava no Rio de Janeiro, a carta dá-nos pistas sobre a controvérsia provocada pelas críticas de Fialho de Almeida à República, recentemente instituída. Logo ele, que tinha sido um crítico feroz da monarquia.

 

"Os redatores do Correio e Diário Ilustrado foram convidados a deixar o país. Há dias, o Povo de Aveiro foi suspenso (tour court) e o redator Homem Cristo exilado. Tudo isto foi proposto em conselho de ministros pelo Bernardino Machado (!) e realizado (...) Também em conselho de ministros, já duas vezes, o mesmo B. Machado falou em mim, por causa dos artigos!!! Foi acordado que se as minhas correspondências para o Correio da Manhã continuarem a referir-se desagradavelmente para a República, eu também serei convidado a ausentar-me por algum tempo. Isto é categoricamente oficial".

 

Numa autobiografia publicada muitos anos antes, em 1892, na "Revista Ilustrada", Fialho de Almeida diz que os seus contemporâneos o veem como um homem com reputação de "desequilibrado indolente" e "colérico". Fosse contra a monarquia ou contra a República. "Discutia e revoltava-se contra as vigentes formas de poder, investindo contra todos aqueles que divergiam dos seus pontos de vista", escreve Lilian Vieira ("A Imaginação Grotesca na Prosa de Fialho de Almeida", 2008). O já falecido historiador Joaquim Palminha resume de forma ainda mais contundente o temperamento do escritor alentejano: "Manifestou-se sempre contra os que, anafados e gordos como 'gatos burgueses' de salão, em nome de modernidades de pacotilha, bem como de 'designs' industriosos sem conteúdo, 'arranhavam' a paisagem cultural e social do País e, mais acintosamente, a da planície transtagana... Sem todavia lhe acrescentarem vida melhor e ofícios mais engenhosos e úteis ao progresso da coletividade".

 

A carta de Fialho seria publicada no jornal brasileiro a 8 de março de 1911. Era um homem amargurado. "Tenho uma pequena casa agrícola de que viver, e que não marcha (pelo reduzida e modesta que é) sem a minha administração direta. Tenho aqui, no Alentejo, um irmão meio louco e profundamente enfermo, de que não posso separar-me. Não tenho rendas nem cargos, que sempre passaram distantes de mim, sem que ninguém se lembrasse nunca de me interessar na vida pública do meu país".

 

Adverte o escritor que o "desterro" do seu canto lhe seria "dolorosíssimo", além de que "arruinaria completamente" as suas economias, "expondo-me na velhice a muitos sérios desconfortos". Tinha 53 anos. Vários problemas de saúde. E restava-lhe dar um passo atrás, não sem pensar em ajustar contas quando o momento chegasse: "Resolvo escrever cartas sobre todas as matérias que não contendam com a política da República, e ignorar esta, até um dia em que a minha desforra chegue, e mui pela certa chegará".

 

A 20 de fevereiro escreve ao "velho amigo" Vicente Toquenho, dando-lhe conta do ano agrícola: "Não menciono o azeite da azeitona que foi vendida para fora. Não menciono o azeite que cada um tem para seu consumo próprio. E estas duas exclusões feitas, calculo que em V.ª de Frade, haja 2000 alqueires de azeite, para ser vendido e entregue ao comércio. Saudades".

 

Nova carta quatro dias depois, esta dirigida a João de Barros, poeta e pedagogo. "Não precisa V. Ex.ª de palavras minhas de exaltação aos seus méritos, justamente consagrados e assinalados nas letras, nem esta tardia carta lhe vai dizer coisas que V.ª Ex.ª não saiba, em justificação do inestimável serviço que V.ª Ex.ª prestou a todos que escrevem, pronunciando-lhes os nomes e fazendo-lhes referências criticas nas suas belas conferências (...) Na parte em que, naquelas referências, V.ª Ex.ª se dirige ao meu nome, vejo que V. Ex.ª me trata com extrema generosidade e bonomia, e por isso lhe venho dizer o quanto o meu agradecimento é vivo e desvanecido, e me rejubila a favorável ideia que os meus pobres trabalhos merecem". É a última carta datada. Fialho de Almeida morre a 4 de março de 1911.

 

TRABALHO DETETIVESCO

 

A estas cartas, a historiadora Emília Salvado Borges juntou muitas outras: 300 escritas por Fialho de Almeida, e 73 por ele recebidas. O resultado é "Fialho de Almeida - Correspondência (1877-1911)", livro recentemente editado pela Colibri. "Para o efeito, percorreu bibliotecas, fundos bibliográficos e arquivos pelo país, buscando nos espólios de mais de duas dezenas de escritores, além do autor, confrontando-se com os itinerários deste, que mudou frequentemente de casa (até muitas dessas moradas a nossa investigadora regista!), num percurso detectivesco em busca da documentação que lhe mostrasse outras faces de Fialho", assinala Annabela Rita, investigadora do Centro de Investigação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. e autora do prefácio.

 

"Tratando-se de correspondência que acompanha toda a obra de Fialho e, na verdade, das gerações que com ele se movem no século (XIX) e no início do novo, opera zooms na sua vida e na vida do Portugal da época, deixa-nos ver um autor em dialogo, numa pose variando com o destinatário, com as circunstâncias, com o grau de familiaridade, com o objetivo, com os interesses, enfim, com a espuma dos dias", acrescenta.

 

A correspondência encontra-se concentrada em duas fases distintas: uma primeira, entre 1877 e 1893, quando saiu de Lisboa, e a segunda, até 1911, quando se encontrava instalado em Cuba e Vila de Frades. "Na primeira", sublinha Annabela Rita, "dominam os afetos e as aspirações literárias e financeiras, assoma o ímpeto irreverente, às vezes, deselegante; na outra, surge já cansado e algo desiludido, absorvido por questões menos sociais e mais profissionais, incluindo as financeiras".

 

É deste período, por exemplo, uma carta datada de Cuba e enviada a 4 de agosto de 1909 ao poeta Afonso Lopes Vieira: "Não sei quando poderei sair desta fornalha. Se ao menos houvesse mar. Mas aqui o mar é de restolho, e temos tido ao meio dia e ao sol 60.º".

 

Numa outra, de 13 de abril de 1905, dirige-se ao médico Augusto da Silva Carvalho, seu antigo colega na Escola Médica de Lisboa, a quem se queixa da saúde: "A erupção (julgo que seja éctima sifilítico; ou não?) cedeu, mas ou fosse casualidade, ou consequência de se recolher; ou falta de higiene nos meus hábitos de alimentação, e cozinha de aldeia, horrível, que sou forçado a ter quando aqui estou, o certo é que comecei a ter perturbações de fígado, digestões horríveis, dores e moinhas nos rins, e sucessivamente assim, até que há 8 dias estas coisas se agravaram".

Uma semana depois, já em Lisboa, escreve a Antero de Figueiredo dizendo-lhe sentir-se "tonificado" pelos ares da capital: "Eu só tenho saúde nas cidades, onde a carne é tenra e a vida circulante". Encontrava-se de partida para o norte de Espanha, para "um ou dois meses de vadiagem silenciosa, de terra em terra".

 

“HORROR PELA EPISTOLOGRAFIA”

 

No estudo introdutório que antecede a publicação das cartas, Emília Salvado Borges recorda que nunca tinha sido feita uma edição em conjunto da correspondência de Fialho de Almeida apesar de ao longo dos anos terem surgido “de forma avulsa, na imprensa, cartas do escritor, algumas delas acompanhadas de estudos de contextualização”. A explicação para esse “desinteresse”, acrescenta, dever-se-á ao facto de “pouca gente” o ler.

 

“Apesar das declarações de Fialho de que detestava escrever cartas – ‘eu tenho ódio da carta’ – e que a idade acentuara nele ‘o horror pela epistolografia’, levando, por vezes, anos a responder às cartas que recebia, foi possível identificar 106 dos seus correspondentes e reunir 300 documentos da sua correspondência ativa privada, bem como algumas das suas cartas públicas: 209 manuscritos originais autógrafos (192 dos quais pressupomos inéditos)", assinala a autora.

 

Segundo Emília Salvado Borges, as cartas agora publicadas “cobrem toda a sua vida literária e permitirão ao leitor acompanhá-lo ao longo dela”. Entre 1877 e 1885, por exemplo, o tom da correspondência “é muitas vezes irreverente, deselegante e mesmo grosseiro”. Apesar das queixas, os documentos, sublinha a autora, “revelam todavia um jovem ‘forte, desempenado, travesso, duma petulância de bom agouro’, com ‘uma embriaguez cerebral’ que adorava, e uma enorme ‘febre de novo’ que o devorava, desejoso de glória (a tal, cujo resplendor, segundo diz, era feito de ouro)”.

 

O casamento e a fixação da sua residência em Cuba e Vila de Frades marcam “uma nova fase na vida do escritor”, diminuindo a intensidade da sua produção literária. “Não deixou, porém, de escrever, apesar de o fazer crer nalgumas das suas cartas, e de assumir noutras, quase no fim da vida, que a literatura e a arte tinham passado a ser apenas ‘impressões de segundo plano’, relegando-as ‘ao papel inofensivo de passatempo’”.

 

A biografia do escritor que a autora traça em “Fialho de Almeida – Correspondência”, num registo que constitui um “ponto intermédio entre literatura e história”, as palavras dirigidas pelo escritor aos seus correspondentes surgem “confrontadas” com a sua produção literária e “contratadas” com as interpretações que lhe têm sido dadas. “Desse confronto vai-se projetando a imagem de Fialho não só como escritor, mas como homem”.

 

Não podia faltar, por isso, uma referência a um dos episódios mais famosos da vida do escritor alentejano. “Em 1900, Fialho de Almeida volta, temporariamente, à ribalta lisboeta pelas piores razões: vai, propositadamente, de Cuba a Lisboa, para assistir, de gravata vermelha, às cerimónias fúnebres de Eça de Queirós e escreve o tão célebre artigo sobre o escritor”.

 

Um artigo onde arrasa a obra de Eça de Queirós, tudo criticando, “o estilo, o vocabulário, as personagens ou a desatenção relativamente às transformações sofridas pela sociedade portuguesa nos muitos anos em que Eça vivera no estrangeiro” mas, sobretudo, como assinala Emília Salvado Borges, pelo tom usado: “O modo como, nesse artigo, se referia a Eça após a morte deste, sobretudo pela, no mínimo deselegante, exploração das suas características físicas, da sua doença e da dos seus irmãos, fez levantar um coro de protestos indignados, não só em Portugal como no Brasil”.

 

Alguns amigos pedem-lhe explicações. Às quais ele responde, por carta. Como a dirigida a António Feijó a 11 de novembro de 1900: “Pode, portanto, se me julga capaz de o apreciar e lhe querer na altura dos seus méritos, supor o quanto as palavras da sua carta me confrangem, na propensão em que o vejo supor no meu juízo crítico sobre o Eça, outra coisa que não seja o ponto de vista de escritor absolutamente absorto no seu assunto, e na mais completa abstração de pessoas, simpatias afetivas, etc.”.

 

Carta de Fialho de Almeida a Artur Abranches Nogueira, escrita em Cuba a 8 de maio de 1877

 

“Meu caro Artur

 

Em verdade não me lembro já do que me dizias na sua carta, mas lembro-me um pouco da tua última correspondência, e felicito-te pelas tuas ideias.

 

Como rapaz ambicioso deves sonhar com a glória.

 

Eu adoro-a desde que me disseram que tinha, como o Senhor dos Passos, um resplendor de ouro.

 

Está agora chovendo. Estou terrivelmente enfastiado.

 

Não há hoje cigarros nem charutos que me fartem.

 

Já pensei em aprender aqui um ofício qualquer. Tudo me serviria – carpinteiro, abegão, marceneiro, com tanto que este tempo passasse sem eu o sentir. Ou então, se eu pudesse calcular matematicamente o efeito tóxico de um narcótico (o ópio, por exemplo) tomá-lo-ia de bom grado para dormir um sono de meses, de anos porventura, se tenho de permanecer aqui.

 

Tinha no pensamento, para te comunicar, uma coisa importante, mas não me lembro o que era. Ah! Então não queres saber? Não tremas, querido. Não espalhes isto em lisboa, não vás agora abalar a política, tão convulsa pelas comoções do Oriente. Mas olha. Digo-to só a ti, ao ouvido, para o Pato não ouvir, nem o Dias sequer. Escuta pois, não respires tão alto; acalma essa agitação. Bem, bem. Agora grava bem estas palavras no teu espírito, que representam uma confissão terrível, solene – todo o segredo da minha existência, o castigo severo da minha desgraça, o motivo cruel da minha loucura.

 

Schut! Schut!

 

Atende:

 

- Ontem fiz vinte anos?

 

- Hoje comi ervilhas.

 

- Amanhã estou de purga.

 

Temem-se aqui grandes inundações. Agitação indescritível.

 

Adeus.

 

Zé Valentim”

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