Texto José d’Encarnação, arqueólogo
Era Fauno, segundo a mitologia romana, o deus dos campos e dos bosques. Nestes últimos, poder-se-iam ouvir estranhas vozes que dele, ao que parece, partiriam a anunciar acontecimentos nefastos. Amiúde se fala dele no plural: eram as ninfas dos bosques perseguidas por chifrudos faunos de pés de cabra, qual Lobo Mau à espreita da Capuchinho Vermelho… Urgia, pois, estar alerta contra as suas arremetidas e, porventura, foi por isso que se gerou hábito de o representar em pedras de anel, para o exorcizar, como se vê numa achada na ‘villa’ romana de Caparide, em Cascais.
Tinha Fauno uma esposa, cujo nome acabou por se omitir, porque, casta e fiel ao seu marido, jamais saía de casa, mas que se deixou cativar, um dia, por um jarro de mui excelente vinho doce, que lhe apresentaram. Bebeu deliciada e ficou, naturalmente, com um grãozinho na asa…. Vendo-a nesse estado, Fauno enfureceu-se, não lhe perdoou e fustigou-a até à morte com um ramo de mirto. Caído em si, ao vê-la exangue, o arrependimento sobreveio e promoveu o seu culto como Deusa Boa. De acordo com outra versão, essa que foi depois a Deusa Boa não era esposa mas filha de Fauno, o qual a tentou seduzir; não tendo conseguido os seus intentos, usou dum estratagema para os conseguir: a ambos transformou em serpentes! O que os omnipotentes deuses faziam!...
Seja como for, a ‘Bona Dea’ – assim se diz em latim – depressa ganhou o entusiasmo das mulheres romanas. Assim, no princípio do mês de dezembro, feita prévia abstinência e sob orientação das Vestais, reuniam-se em casa do cônsul ou do pretor, levando as mais variadas flores (com exceção do mirto). Celebrado o sacrifício em honra da deusa, a festa assumia uma tonalidade cada vez mais sensual, sob influência do vinho, da música e das danças, degenerando facilmente em orgia. Nenhum homem era aí admitido.
E porque vem ao caso falar aqui de Fauno e da ‘Bona Dea’?
É que aconteceu que – no âmbito do projeto de requalificação urbana da Rua do Sembrano, em Beja, com vista à construção do museu de sítio que ora existe no local, em pleno centro histórico, portanto, da antiga colonia romana de Pax Julia – aí se realizaram escavações arqueológicas prévias, nas décadas de 80 e 90 do século passado, da responsabilidade de Susana Correia e José Carlos Oliveira e, numa última fase, de Carolina Grilo.
Daí resultou que, no decorrer da abertura de uma vala para o saneamento, se identificou um pedaço de pedra com letras, reutilizado como tampa de um antigo coletor entre a Rua do Sembrano e o Largo de São João (fig. 1). Tratava-se de um bloco retangular de mármore cinzento, cuja face dianteira fora mui cuidadosamente alisada para receber a inscrição, e que, pelo seu aspeto, teria servido originalmente como lintel de um pequeno templo (fig. 2).
Feito o desdobramento da inscrição e tendo em conta as características da paginação, optou-se por aí ler o seguinte:
BONA[E ‧ DEAE] / [IV]LIA ‧ L(ucii) L(iberta) SAT[VRNINA?] ‧ [D(e) ‧ S(ua) P(ecunia) ‧ D(ono) ‧ D(edit)] [?]
Inscrição em latim, que poderá traduzir-se desta forma: “À Boa Deusa. Júlia Saturnina, liberta de Lúcio, ofereceu a expensas suas”.