Diário do Alentejo

As mulheres de Pax Julia queriam uma Deusa Boa!

26 de fevereiro 2021 - 10:20
Figura 1 - A epígrafeFigura 1 - A epígrafe

Texto José d’Encarnação, arqueólogo

 

Era Fauno, segundo a mitologia romana, o deus dos campos e dos bosques. Nestes últimos, poder-se-iam ouvir estranhas vozes que dele, ao que parece, partiriam a anunciar acontecimentos nefastos. Amiúde se fala dele no plural: eram as ninfas dos bosques perseguidas por chifrudos faunos de pés de cabra, qual Lobo Mau à espreita da Capuchinho Vermelho… Urgia, pois, estar alerta contra as suas arremetidas e, porventura, foi por isso que se gerou hábito de o representar em pedras de anel, para o exorcizar, como se vê numa achada na ‘villa’ romana de Caparide, em Cascais.

 

Tinha Fauno uma esposa, cujo nome acabou por se omitir, porque, casta e fiel ao seu marido, jamais saía de casa, mas que se deixou cativar, um dia, por um jarro de mui excelente vinho doce, que lhe apresentaram. Bebeu deliciada e ficou, naturalmente, com um grãozinho na asa…. Vendo-a nesse estado, Fauno enfureceu-se, não lhe perdoou e fustigou-a até à morte com um ramo de mirto. Caído em si, ao vê-la exangue, o arrependimento sobreveio e promoveu o seu culto como Deusa Boa. De acordo com outra versão, essa que foi depois a Deusa Boa não era esposa mas filha de Fauno, o qual a tentou seduzir; não tendo conseguido os seus intentos, usou dum estratagema para os conseguir: a ambos transformou em serpentes! O que os omnipotentes deuses faziam!...

 

Seja como for, a ‘Bona Dea’ – assim se diz em latim – depressa ganhou o entusiasmo das mulheres romanas. Assim, no princípio do mês de dezembro, feita prévia abstinência e sob orientação das Vestais, reuniam-se em casa do cônsul ou do pretor, levando as mais variadas flores (com exceção do mirto). Celebrado o sacrifício em honra da deusa, a festa assumia uma tonalidade cada vez mais sensual, sob influência do vinho, da música e das danças, degenerando facilmente em orgia. Nenhum homem era aí admitido.

 

E porque vem ao caso falar aqui de Fauno e da ‘Bona Dea’?

 

É que aconteceu que – no âmbito do projeto de requalificação urbana da Rua do Sembrano, em Beja, com vista à construção do museu de sítio que ora existe no local, em pleno centro histórico, portanto, da antiga colonia romana de Pax Julia – aí se realizaram escavações arqueológicas prévias, nas décadas de 80 e 90 do século passado, da responsabilidade de Susana Correia e José Carlos Oliveira e, numa última fase, de Carolina Grilo.

 

Daí resultou que, no decorrer da abertura de uma vala para o saneamento, se identificou um pedaço de pedra com letras, reutilizado como tampa de um antigo coletor entre a Rua do Sembrano e o Largo de São João (fig. 1). Tratava-se de um bloco retangular de mármore cinzento, cuja face dianteira fora mui cuidadosamente alisada para receber a inscrição, e que, pelo seu aspeto, teria servido originalmente como lintel de um pequeno templo (fig. 2).

 

Feito o desdobramento da inscrição e tendo em conta as características da paginação, optou-se por aí ler o seguinte:

 

BONA[E ‧ DEAE] / [IV]LIA ‧ L(ucii) L(iberta) SAT[VRNINA?] ‧ [D(e) ‧ S(ua) P(ecunia) ‧ D(ono) ‧ D(edit)] [?]

 

Inscrição em latim, que poderá traduzir-se desta forma: “À Boa Deusa. Júlia Saturnina, liberta de Lúcio, ofereceu a expensas suas”.

 

Figura 2 - Proposta de TempleteFigura 2 - Proposta de Templete

Por conseguinte, uma antiga escrava da família Júlia – uma das mais conceituadas famílias da colónia, fundada precisamente por Júlio César – decidira mandar construir um pequeno templo em honra da divindade da sua devoção. Da sua e, sem dúvida, também das mulheres de Pax Julia. Ficava seguramente o templete num dos principais bairros urbanos e essa atitude de Júlia Saturnina terá concitado em seu redor o elemento feminino da urbe, que, desta forma, podia organizar os seus convívios, a pretexto celebrarem a ‘Bona Dea’.

 

Sabemos que assim acontecia na Península Itálica e na Gália. Este é, porém, o único testemunho desse culto na Hispânia romana, o que confere enorme valor documental a este, aparentemente bem singelo, fragmento epigrafado, mormente porque datável dos primórdios da existência da colónia, no século I da nossa era.

 

Tal facto é, ainda, mais saliente do ponto de vista histórico, porque desses cultos mistéricos, reservados, já se conheciam vestígios em Pax Julia: uma inscrição dá conta de que elementos vindos de Braga formaram um grupo, o ‘sodalicium Bracarorum’, para honrar o deus Sol; uma outra informa que, em cerimónia ritual presidida por um sacerdote, dois membros da mesma família se devotaram à Mãe dos Deuses, Cíbele, depois de terem sido aspergidos com o sangue da vítima imolada.

 

Tudo nos leva a crer, pois, que, sob a capa da religião, eram os interesses socioeconómicos que também contavam para os membros dessas associações. Mais uma prova, portanto, da relevância social e financeira usufruída pelas gentes da colónia.

 

Há, porém, um dado que importa frisar: insignificante fragmento epigrafado, à primeira vista sem préstimo de maior, acabou por constituir notável contributo para a história da cidade na época romana. Sabemos que a cidade de Beja cresceu, ao longo dos séculos, por cima do aglomerado urbano erguido pelos romanos. Muitas das pedras desse tempo foram sendo aproveitadas nas muralhas, nas casas e muitas jazem ainda no subsolo… Todo o cuidado é pouco para se salvaguardarem esses vestígios, tijolos que são do edifício da nossa memória secular!

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