Diário do Alentejo

Brejão, o refúgio de Amália Rodrigues no Baixo Alentejo

26 de agosto 2020 - 16:30

Amália Rodrigues apaixonou-se por um bocado de terra à beira-mar plantado. Ali, para os lados do Brejão, em Odemira. Um bocado de terra que ficou conhecido como o “refúgio” da grande diva do fado. Um lugar concreto que encontrou depois de ter percorrido toda a costa vicentina, de Sines a Lagos, e que jamais abandonou. Nem ao local, nem às suas gentes, deixando em testamento verbas para um posto médico que socorra as gentes da terra que um dia a recebeu. Esta é uma viagem à memória das gentes que com lhe conviveram. No Brejão.

 

Texto Bruna Soares

 

O ano já não o sabe precisar. Sabe, sim, que um dia pediu um emprego a Amália Rodrigues e que, na altura, era ainda muito jovem. “A bem dizer era miúdo e o meu pai é que trabalhava para a senhora Amália”. No Brejão, concelho de Odemira. Este miúdo é José Oliveira, hoje com 71 anos feitos.

 

“As pessoas no Brejão ganhavam, em média, 10 escudos por dia e a Amália Rodrigues, quando cá chegou, começou a pagar seis escudos à hora. As pessoas queriam ir todas trabalhar para ela e, claro, eu também. Foi por esse motivo que a conheci”, recorda agora, sentado na biblioteca do centro cultural da terra. No mesmo local em que foi equipado, por vontade expressa em testamento deixado por Amália Rodrigues, um posto médico para acudir às gentes da terra que um dia a acolheu.

José Oliveira aventurou-se, porque “só o que tinha a perder era não receber um sim não”, e tentou a sua sorte. “E não é que a senhora acedeu a dar-me um emprego? Mas não era para cavar, nem fazer num trabalho de esforço na propriedade, que, isso, ela não queria que eu fizesse. Comprou, então, uma motorizada e eu, um miúdo, o que tinha de fazer era ir todos os dias ao talho, a Odeceixe, buscar carne para a empregada cozer para dar aos cães. E lá ia eu. Nunca cheguei a perceber quanto ganhei com este meu trabalho, porque quem recebia o dinheiro era o meu pai. Mas são memórias únicas, daquelas que jamais se perdem. Trabalhei para a Amália, como moço de recados, a ir buscar carne para os cães”.

 

Eis o que lhe vem a memória, primeiramente, assim que se recorda de Amália Rodrigues, a diva do fado. “O tempo, que me deixou o tempo”, diz o fado “Com que voz”, cantado por Amália Rodrigues. E esta é, na verdade, uma viagem a esse tempo e ao que sobrou dele, em Brejão.

 

Uma estória que volta por culpa da preparação do centenário do nascimento da fadista, que já está em marcha, e que se assinala em 2020. E porque as iniciativas que marcam o início das comemorações já arrancaram em Odemira e, mais concretamente, no Brejão. Precisamente na casa que um dia resolveu construir junto às arribas da, até então, conhecida praia da Seiceira, e que haveria de ser rebatizada com o seu nome: Amália.

 

Um regresso, então, à década de 1960. “Veio dar um passeio em toda a Costa Vicentina, que vai de Sines a Lagos, a ver se encontrava algo à beira mar de que gostasse e que lhe vendessem. Passou por aqui e gostou logo ali daquela parte. Veio logo estar com a minha mãe, que era quem era a proprietária, e comigo, que era o filho mais velho, e, portanto, fiz parte do negócio. Recordo-me que disse logo à minha mãe para vender, que era uma coisa que não ficava a fazer falta nenhuma à gente. Era um pedaço de terra à beira-mar, na altura, era terreno que não dava para grande coisa, não havia cá estufas, não havia nada. Era terra de areia. E agora é o que interessa por estas paragens”, conta Jácome Pacheco, do alto dos seus 94 anos, chapéu rigorosamente envergado.

 

Um terreno que Amália quis para erguer a sua casa de férias. Para plantar as suas flores, muitas flores, e para receber os amigos. Um terreno que foi o início do cordão umbilical que a amarrou, para sempre, a Brejão. No litoral alentejano.

No tempo do escudo, 300 contos foi o que custou o terreno onde Amália Rodrigues ergueu o seu refúgio balnear. “Ficámos admirados de a senhora dona Amália, uma senhora de tanto valor, vir para uma terra destas. Uma terra tão pobrezinha. Uma terra sem vistas, mas ela gostou. Se fosse hoje não sei quanto valeria aquele terreno”, dispara Jácome. Que acrescenta ainda: “Antes já tinha ouvido falar no grande nome da dona Amália Rodrigues. Sabia da sua existência, da sua música, mas nunca pensei que a visse alguma vez, quanto mais pensar que a começaria a ver todos os dias, que falaria com ela e que ficaria seu amigo. Dela e do seu marido, César Seabra, que era quem passava aqui temporadas ainda maiores”.

 

E a atestar que esta terra não se esquece de Amália Rodrigues, logo assim que se chega, quatro paredes, que são laterais de casas desta povoação, evocam a artista. Quatro grafitis que retratam a fadista. Mas a provar que também não se esquece de César Seabra, tal como Amália, também ele, nesta terra, dá o nome a uma rua.

 

“O senhor César era a sorte da gente do Brejão. Todos os dias havia quem se colocasse à beira da estrada, à espera de o ver passar, para apanhar boleia. E não havia um dia em que ele não parasse. Levava gente para ir ao médico, para tratar de papéis, o que fosse necessário”, recorda Jácome.

 

A memória de José Oliveira regressa novamente no tempo. “O meu pai um dia sentiu-se mal e tentou chegar de bicicleta a São Teotónio para ir ao médico. Só que um pouco antes de chegar à estrada nacional não conseguiu andar mais e ficou caído. Ela, a dona Amália, passou com o seu marido, o César Seabra, viram-no e levaram-no, mas não o levaram para São Teotónio, levaram-no para Lisboa. Meteram-no no hospital, foi operado e depois como o meu pai teve alta antes de eles [Amália e César] regressarem ao Brejão, teve dois dias em casa da Amália Rodrigues. O meu pai era um camponês que mal sabia escrever o seu nome. Isto para que as pessoas de fora vejam a simplicidade que esta gente tinha, pelo menos para connosco”.

 

“Povo, povo, eu te pertenço”, diz outro fado que Amália tantas vezes cantou. “Para a população de Brejão ainda hoje representam muito. Ajudavam muito as pessoas, quando era necessário, e davam-se bem com toda a gente”, conclui José.

 

A uma segunda-feira, junto à povoação, avistam-se, sobretudo, trabalhadores agrícolas, e de várias nacionalidades. Brejão é hoje, como muitas outras terras vizinhas, um verdadeiro caldeirão multicultural. E por aqui erguem-se estufas sem fim, onde crescem pequenos frutos vermelhos. E é nestas estufas, por sinal, que trabalham estas pessoas vindas de várias partes do mundo. No cultivo, na apanha, no embalamento…

 

Na estrada, ladeada por estufas, a uma certa altura avista-se uma encruzilhada. E avista-se uma grande flor amarela. “Costumo dizer às pessoas que cá vêm, de propósito para verem a casa de Amália Rodrigues, que quando encontrarem uma flor estão no caminho certo. E as pessoas ficam muito espantadas, porque flores há muitas. Mas, de facto, aquela é diferente das outras”, atira agora António Pacheco, de 60 anos de idade.

O menino que viveu no terreno que depois Amália comprou. “Eu tinha cinco anos quando a Amália Rodrigues apareceu por aqui pela primeira vez. Curiosamente o terreno que ela comprou pertencia à minha avó e nesse terreno havia uma casinha, pois, posteriormente, é que ela construiu a sua vivenda. E foi nesta casinha que vivi até aos cinco anos. E foi também nesta casinha que ela ficou nos primeiros tempos”, recorda. Mas por que motivo uma flor simboliza agora a presença do “refúgio” de Amália Rodrigues? “O gosto dela era as flores. Levava tempo infinito a cavar, a plantar, a regar. O encanto dela eram as flores”, responde imediatamente Jácome.

 

Foi uma equipa, vinda de fora do Brejão, que ergueu a casa de Amália Rodrigues, que hoje se encontra transformada em alojamento local, propriedade, esta, que pertence atualmente à Fundação Amália.

 

“Quando vinha para o Brejão era mesmo para se refugiar, era um porto de abrigo, mas isso não a impedia de se dar com as pessoas da terra. Mas o seu marido, o César, é que ainda tinha uma relação mais estreita com a população. Uma curiosidade, a minha mãe tinha uma mercearia e o César vinha e anotava tudo o que nós tínhamos, para só comprarem fora o que não existia à venda no Brejão. E isto revela muito das pessoas que eram”, diz António. E acrescenta: “Sem dúvida nós devemos-lhe muito. Se esta terra é mais conhecida devemo-lo a Amália. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para a recordar, porque merece tudo. Até porque ela não se esqueceu de nós, porque em testamento deixou uma verba da Fundação Amália para reverter para o nosso posto médico”.

 

Um posto médico, que com mais ou menos dificuldades, vai funcionando. “Chegámos a ter o posto e não ter médico. Durante alguns anos foi uma médica de Gondomar, a dra. Maria João, que também se apaixonou por esta região, que fazia o favor de cá vir sempre que podia, de propósito, para as pessoas não estarem sem nenhuma assistência. Depois a Câmara de Odemira disponibilizou, através de uma verba, um fundo para tentarmos contratar um médico e atualmente temos duas vezes por mês consultas de clínica geral”, conta António Campos, presidente da Associação Cultural de Desenvolvimento Económico e Social do Brejão, ele que também foi amigo de Amália.

 

“Lembro-me quando ela chegou, que estava tudo a gente excitada, porque ninguém acredita que a Amália Rodrigues estava no Brejão. Lembro-me do carro que ela e o César tinham, um Dodge americano que ainda aparece às vezes nos filmes de cowboys, que tinha um grande painel de madeira no meio das portas”, conta. E prossegue: “Depois de já cá se terem fixado, o sr. Jácome tinha um café e, na altura, não havia correio, nem telefone no Brejão. Não havia nada e o correio que vinha era entregue no café e às vezes apareciam telegramas que vinham primeiro para Odeceixe. Eu tinha uma bicicleta e o Jácome dizia-me: António está aqui um telegrama para a Amália, queres ir entregar-lhe? Eu queria sempre. E ela lá me recebia sempre muito simpática. Eu via a Amália e ainda trazia uns trocos, que ela dava-me sempre umas moedas”.

Depois António cresceu e foi para a Força Aérea. “Fiz muitas viagens para vir ou ir depois do fim de semana de boleia, principalmente, com o senhor engenheiro, o César Seabra. Ficámos amigos de verdade. Foram 40 anos. No dia em que o César morreu eu fui à basílica da Estrela e quando cheguei ela estava sentada ao lado do caixão com várias amigas, quando me aproximei ela agarrou-me nas mãos e ficamos frente a frente, e as pessoas não me conheciam de lado nenhum, e ela não largava as minhas mãos. Ficámos assim, tempo e tempo. Perdi a noção do tempo”.

 

E há algo que ninguém se esquece em Brejão, das festas, pelos Santos Populares, que Amália dava em sua casa e em que a convidava toda a gente. “Havia sardinha assada e vinho”. E havia festa, muita festa. E cantava-se e faziam-se fogueiras. “E ela queria era ouvir-nos, conhecer-nos. As nossas tradições, as nossas danças o nosso cante. Queria ouvir-nos”. “Numa casa portuguesa fica bem pão e vinho sobre a mesa. E se à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente. Fica bem esta franqueza, fica bem. Que o povo nunca desmente. A alegria da pobreza está nesta grande riqueza. De dar, e ficar contente”. Diz o fado que ecoado tantas vezes pela voz de Amália. De Amália que também é do Brejão.

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