Diário do Alentejo

Herdade da Malhadinha Nova: o regresso às castas como expressão do lugar

22 de dezembro 2025 - 08:00

O lançamento dos novos vinhos monovarietais da herdade da Malhadinha Nova não é apenas a apresentação de mais uma colheita, é uma afirmação de identidade num Alentejo cada vez mais diverso, competitivo e exposto a leituras fáceis. Estes vinhos não são uma demonstração técnica, nem uma resposta a tendências de mercado, mas, sim, uma reafirmação de uma filosofia construída lentamente, ano após ano, no novo milénio, recentrando o discurso no essencial: a casta, o lugar e a interpretação humana.

 

Texto | Manuel Baiôa

Fotos | Herdade da Malhadinha Nova

 

Num Alentejo que se reinventou nas últimas décadas, ora pela modernização tecnológica, ora pela internacionalização de estilos ou ainda pelo regresso às origens, a Malhadinha Nova continua a insistir numa ideia simples e difícil de executar: deixar que o lugar fale, neste caso, através das castas.Depois de um percurso de mais de duas décadas marcado por uma visão integrada de agricultura, vinho, hospitalidade e cultura, a família Soares reforça, com estes monovarietais, a sua leitura contemporânea do Alentejo, onde sustentabilidade, detalhe e tempo caminham juntos.Inspirados pela biodiversidade espontânea dos seus cerca de 700 hectares, os novos vinhos ganham uma companhia visual particularmente singular: plantas nativas que florescem livremente na propriedade, ilustradas pela nova geração da família Soares. Da flor de cardo que tinge de magenta a Touriga Nacional, ao verde-canabrás que acompanha o Verdelho, cria-se uma paleta cromática que é, em simultâneo, um tributo à ecologia local e uma declaração de intenções sobre o conceito de autossustentabilidade que define o projeto.

 

Herdade da Malhadinha Nova: uma história de ligação, respeito e valorização do território A história da Malhadinha Nova começa em 1998 quando a família Soares decide investir numa herdade meio abandonada em Albernoa, no limite sul do concelho de Beja, numa altura em que a noção de sustentabilidade aplicada à viticultura ainda não fazia parte do discurso dominante e numa zona onde as vinhas de sequeiro apenas existiam em pequenas áreas onde o lençol freático lhes dava algum alento. O cenário estava longe de ser idílico: ruínas, solos pobres, ausência de infraestruturas e um território praticamente esquecido. A família Soares tinha uma história empresarial ligada à distribuição de vinho no Algarve através da histórica Garrafeira Soares, fundada em 1983. A visão empreendedora da nova geração criou o impulso necessário para concretizar um sonho ambicioso, quase desmedido para a época: produzir ali não apenas um bom vinho, mas um dos melhores vinhos de Portugal. No entanto, o caminho mais simples ao chegar a Albernoa teria sido a exploração intensiva ou a descaracterização do espaço. A escolha foi outra, recuperar sem violentar, produzir respeitando o equilíbrio natural existente, valorizando os campos e as pessoas que cuidam deles.Desde cedo ficou claro que o vinho seria apenas uma parte de um projeto mais amplo. A primeira vinha só foi plantada em 2001 e, de forma simbólica, pela filha mais velha de Rita e João Soares, gesto que marcaria para sempre a ligação entre gerações e o carácter familiar do projeto. A Malhadinha Nova integrou nos anos seguintes outras herdades contíguas, contando, hoje, cerca de 80 hectares de vinha, num total de 700 hectares, onde convivem montado de azinho, olival tradicional, culturas cerealíferas, pastagens naturais, criação de raças autóctones (vaca alentejana, porco alentejano, ovelha merina, cavalo puro sangue lusitano), pomares e hortas biológicas. Cada segmento funciona como parte de um ecossistema integrado, onde a sustentabilidade ambiental e a qualidade agrícola se reforçavam mutuamente.Esta biodiversidade é uma mais-valia estética e turística, mas, acima de tudo, é uma opção pela proteção de um ecossistema funcional. A conversão integral da propriedade para modo de produção biológico, concluída em 2020, formalizou práticas que já vinham sendo aplicadas há anos: fertilização natural dos solos, uso de culturas auxiliares, pastoreio controlado das ovelhas entre as vinhas, corredores biológicos para atração de fauna auxiliar e uma gestão rigorosa dos recursos hídricos e energéticos. As águas pluviais são recolhidas em cinco barragens estrategicamente posicionadas. A adega funciona por gravidade, aproveitando o desnível natural do terreno. Painéis solares fornecem energia para as unidades de alojamento. Estações meteorológicas e sondas de humidade monitorizam continuamente as necessidades hídricas das videiras, otimizando um recurso precioso numa região que enfrentará, inevitavelmente, maiores desafios climáticos nos próximos anos.Rita Soares, CEO e fundadora da Herdade da Malhadinha Nova, sintetiza essa visão de forma clara: “O nosso sonho é deixar um legado de autossustentabilidade, onde o espaço, o tempo e a natureza são a mais elevada expressão de luxo e felicidade. Inspirámo-nos nas flores que nascem espontaneamente na primavera para celebrar a simplicidade da vida”. Pode parecer um objetivo algo simples, mas ganha densidade quando observada no terreno. Esta ideia de luxo silencioso, distante do excesso e próxima do essencial, atravessa todo o projeto Malhadinha e dá-lhe coerência. É uma filosofia que vai muito além da produção de vinho, tangenciando o domínio da responsabilidade social, da preservação cultural e da regeneração ambiental.A herdade está integrada na Rede Natura 2000, o que implica restrições reais e obrigações concretas. A presença de espécies protegidas extremamente raras (como a abetarda, o cisão e o peneireiro-das-torres), a manutenção de ecossistemas sensíveis e a limitação de práticas agrícolas agressivas fazem parte do quotidiano. É um caminho mais lento, mas reforça a coerência do trilho seguido.

 

 

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Hotel e restaurante: quando o vinho se prolonga na experiência A hospitalidade na Malhadinha Nova nunca foi pensada como produto independente do vinho. A primeira unidade hoteleira surge em 2008, com a recuperação da casa original da herdade, dando origem à Malhadinha Country House & Spa. Ao longo dos anos, outras casas e villas foram sendo integradas, sempre recuperadas a partir de ruínas existentes, respeitando técnicas construtivas tradicionais, materiais locais, desde o reboco à colher, às casas caiadas, e integra mobiliário recuperado e peças de artesanato regional, criando uma narrativa de autenticidade e conforto.

O resultado é um conjunto de unidades dispersas que evita a lógica do hotel clássico. Aqui, a experiência constrói-se no silêncio, no espaço e no tempo. A entrada para o grupo Relais & Châteaux, em 2020, trouxe reconhecimento internacional, mas não alterou a essência do projeto, que continua assente na autenticidade e na ligação ao território. O envolvimento da Malhadinha Nova com a região onde está implantada transcende os limites tradicionais de um projeto agrícola: a família preserva artes e ofícios locais, forma gerações de profissionais da hotelaria e criou oportunidades para mais de 70 colaboradores, dos quais 80 por cento são originários do Alentejo.As experiências oferecidas aos hóspedes vão além da mesa (workshops de olaria, de buinho, de pão alentejano, de botas alentejanas, de viola campaniça, visitas à coudelaria e ao montado) e reforçam a ligação entre turismo, cultura e economia local. A Malhadinha tem também um historial de projetos sociais e culturais, desde parcerias com escolas de hotelaria até iniciativas que promovem ofícios tradicionais, o que a posiciona como um ator relevante no tecido regional.O restaurante é outro pilar central. Aberto desde 2007, afirma-se como espaço de interpretação contemporânea da gastronomia alentejana, com forte dependência da produção própria e de parcerias locais duradouras. A consultoria do chefe Joachim Koerper trouxe rigor técnico e leitura internacional, enquanto a equipa residente garante continuidade e identidade. São escolhidos produtos de qualidade superior, com precisão cirúrgica, preferencialmente, da própria propriedade ou da região. Cada vegetal, cada fruta, cada cereal provém de cultivo biológico. A vaca alentejana, o porco alentejano e a ovelha merina possuem denominação de origem protegida (DOP). O vinho, o azeite e o mel são produzidos na propriedade. Até os cereais (trigo duro, barbela, aveia, centeio, cevada) são cultivados localmente. Parcerias com produtores locais complementam esta autossuficiência e potenciam os produtos alentejanos de qualidade. Em 2024, a atribuição da “Estrela Verde Michelin” veio reconhecer um trabalho apoiado na sustentabilidade real, não apenas discursiva.Aqui, a ligação entre cozinha e vinha é orgânica. A experiência gastronómica é, naturalmente, desenhada em torno dos vinhos. Cada prato é pensado para dialogar com os brancos minerais ou os tintos estruturados da casa, criando harmonizações que contam histórias sobre a paisagem que se avista das janelas do restaurante. Os monovarietais da Malhadinha encontram neste contexto o seu lugar natural, em que a precisão do copo dialoga com a sobriedade do prato, numa cozinha profundamente ligada ao território.

Os novos vinhos monovarietais da Malhadinha: quando a natureza inspira a arte de fazer vinho Os monovarietais sempre ocuparam um lugar especial no portefólio da Malhadinha, surgindo apenas quando a vinha o permite. É necessário que produza uvas de excelente qualidade e em quantidade suficiente para serem canalizadas para os vinhos de lote e para os monovarietais, e que, ao mesmo tempo, ofereça matéria-prima capaz de sustentar uma leitura autónoma. Não há obrigação de continuidade, nem de completude do portefólio. A colheita de 2024, no caso dos brancos, e de 2023, nos tintos, permitiu reunir um conjunto particularmente expressivo, tanto pela qualidade como pela diversidade de leituras.Na adega, a abordagem mantém-se coerente. Vindima manual antes do nascer do sol, transporte em pequenos cestos, vinificação parcela a parcela, remontagens suaves e pisa a pé em lagares de inox. O funcionamento por gravidade, o uso de energia solar e a reutilização de água da chuva traduzem escolhas técnicas alinhadas com a filosofia do projeto. O estágio dos brancos foi feito em inox e o dos tintos fez-se em barricas francesas de grão fino, usadas com contenção.O enólogo Nuno Gonzalez contextualiza o momento: “Depois da colheita de 2023, que nos encheu de orgulho, chegam agora as novidades de 2024, que refletem uma vindima superior em termos de qualidade e com alguns regressos há muito aguardados”. A frase resume bem o espírito do lançamento. Estes vinhos não são exercícios de estilo, são respostas a condições excecionais. Os rótulos, desenhados pela nova geração da família e inspirados na flora autóctone da herdade, reforçam a ligação entre vinho, território e memória.O Antão Vaz é uma variedade que, durante séculos, permaneceu quase exclusiva de Vidigueira. Nos últimos anos viajou para outras paragens e desceu até Albernoa. O “Antão Vaz da Malhadinha, Vinha da Peceguina 2024” apresenta-se delicado e preciso. O nariz revela fruta de caroço e um registo mineral discreto. Na boca, a frescura e a acidez equilibram uma estrutura ampla, resultando num vinho sedutor sem ser pesado, uma leitura pouco óbvia da casta no contexto alentejano, que está frequentemente associada à exuberância da fruta tropical. No rótulo, a heracleum, desenhada por Benedita, simboliza a robustez e a elegância desta casta que se adapta como poucas ao clima alentejano.O “Roupeiro da Malhadinha, Vinha da Malhadinha 2024” confirma a consistência desta referência. Flor de laranjeira, fruta de polpa branca e um registo mineral discreto antecedem uma boca texturada, salivante e longa. É um vinho que desafia preconceitos sobre a casta, mostrando capacidade de envelhecimento e versatilidade gastronómica. A ilustração da esteva, pelo traço de António, é a metáfora perfeita: uma planta resistente, resiliente, que perfuma os campos do Alentejo, tal como este vinho perfuma o copo.O “Verdelho da Malhadinha, Vinha da Peceguina 2024” aposta na frescura e na verticalidade. Notas cítricas, algum vegetal e uma leveza enganadora constroem um vinho tenso, direto e muito adaptado à mesa. Aqui, o Alentejo afasta-se deliberadamente da opulência. O canabrás, ilustrado por João Maria, reflete o carácter selvagem e indomável deste vinho, que é uma explosão de frescura no palato.O “Viosinho da Malhadinha, Vinha do Olival 2024” surge como uma interpretação mais mineral e austera do que é habitual. O ataque incisivo, a acidez fina e o final seco fazem deste vinho um exercício de contenção, que pode surpreender quem espera exuberância aromática. A leveza do dente-de-leão desenhado por Benedita contrasta com a seriedade e a profundidade deste branco, criando um jogo interessante entre a imagem e o conteúdo.No campo dos tintos, o regresso do “Syrah da Malhadinha, Vinha da Malhadinha 2023” era aguardado. Intenso, com fruta preta fresca, especiarias e barrica bem integrada, mostra garra sem agressividade. A estrutura é sólida, mas equilibrada, apontando para um bom potencial de guarda. A papoila, vibrante e vermelha, ilustrada por Mateus, captura a essência apaixonante e a cor intensa deste vinho.A “Touriga Nacional da Malhadinha, Vinha da Peceguina 2023” confirma a leitura elegante da casta. Floral, com violeta evidente, fruta vermelha madura e taninos polidos. É um vinho complexo, mas contido, mais preocupado em expressar o sítio do que em afirmar músculo. O cardo, desenhado por Benedita, com a sua beleza agreste e resistente, espelha a capacidade desta casta de produzir vinhos de classe mundial mesmo em terroirs exigentes e quentes.Num tempo em que o Alentejo procura novos equilíbrios face às alterações climáticas e à pressão do mercado, a Malhadinha Nova escolhe aprofundar em vez de simplificar. Os novos monovarietais não prometem consensos fáceis, mas sugerem caminhos de prazer diferenciados.

 

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