Diário do Alentejo

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10 de março 2025 - 08:00
Os vinhos de altitude e de vinhas velhas da serra de São MamedeFoto | Terrenus

O Alentejo tem vinhas velhas a mais de 750 metros de altitude na serra de São Mamede. O enólogo Rui Reguinga ficou apaixonado por elas e tem dedicado os últimos 20 anos à sua recuperação e valorização.

 

Texto  | Manuel BaiôaFoto | Terrenus

 

Em 2004, nasceu a marca Terrenus, com o propósito de destacar as virtudes das vinhas ancestrais da serra de São Mamede, entre Portalegre e Marvão. Através de lotes harmoniosos, a marca revelou o potencial dessas vinhas, mas também mostrou a singularidade de algumas delas por meio de vinhos artesanais de grande identidade e que assim ajudou a salvá-las.

 

O ENÓLOGO RUI REGUINGA Rui Reguinga é amplamente reconhecido como um dos enólogos mais proeminentes de Portugal, destacado pela sua habilidade e compromisso com o terroir. Nascido em Almeirim, no Ribatejo, Rui Reguinga cresceu numa família com profundas raízes no mundo da vinha e do vinho. Filho e neto de vitivinicultores, desde cedo alimentou o sonho de seguir uma carreira na área. Esse desejo concretizou-se quando se licenciou em Engenharia Alimentar pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa.

Em 1990 estagiou na região de Champagne, experiência importantíssima para confirmar que era no mundo dos vinhos que queria seguir carreira. Pouco tempo depois começou a sua primeira vindima enquanto enólogo assistente na Tapada do Chaves, trabalhando sob a orientação de João Portugal Ramos na empresa Consulvinus. Durante 10 anos deu assistência a dezenas de casas que então estavam a nascer no Alentejo e noutras regiões do País. No entanto, foi na Adega Cooperativa de Portalegre que tomou contacto pela primeira vez com as vinhas velhas da serra de São Mamede: “Muitos dos sócios tinham vinhas velhas aqui na serra. E, a partir daí, ficou-me sempre aqui um bocadinho na cabeça, pois as uvas daqui eram diferentes, mas para melhor”, recorda Rui Reguinga. De facto, “nós na cooperativa tínhamos uma cuba, que era a que nós chamámos o DOC Portalegre”, na qual só entravam uvas das vinhas velhas da serra de São Mamede e, “comparativamente com as outras cubas que nós tínhamos, aquele vinho ficava sempre especial”, tendo ganho diversos prémios nos anos 90.

Em 2000 fundou a sua própria empresa de consultoria, permitindo-lhe trabalhar em projetos vinícolas em diversas regiões de Portugal. O seu vasto conhecimento dos diferentes terroirs portugueses e a sua experiência internacional levaram-no a tornar-se o primeiro enólogo português a oferecer consultoria em países como Brasil, Argentina e Sri Lanka. Esta atividade internacional rendeu-lhe o título de “enólogo voador” na imprensa portuguesa, embora também pudesse ser apelidado de “enólogo todo-o-terreno”, pois fazia de carro quase 100 000 quilómetros por ano. Neste momento ainda tem várias consultadorias, mas vai repartindo o seu tempo entre estas e o seu projeto pessoal.

 

A ATRAÇÃO PELAS VINHAS VELHAS DA SERRA DE SÃO MAMEDE A trajetória de Rui Reguinga como enólogo consultor seguiu de forma brilhante. Contudo, como ele próprio relata: “Chegou um momento em que senti o desejo de criar o meu próprio vinho, algo que acontece naturalmente na vida de um enólogo. Decidi que seria aqui, na serra de São Mamede, e assim o fiz”. Foi em 2004 que Rui iniciou a busca por vinhas antigas na região, encontrando duas. “Uma delas ainda é minha até hoje”, revela, “e foi com essas vinhas que nasceu o meu primeiro vinho”, o “Terrenus Reserva tinto 2004”. Desde então tem adquirido outras vinhas centenárias no Parque Natural da Serra de São Mamede, onde passou a concentrar-se plenamente no desenvolvimento do seu projeto Terrenus, dedicando-se minuciosamente a cada pormenor. A compra destas vinhas nem sempre é fácil e é quase sempre demorada. Na primeira abordagem os proprietários diziam sempre “eu não vendo a vinha”, retorquindo, então, “ok, eu quero é comprar a uva”. Depois de alguns anos de relação com os proprietários, quase um namoro, foi possível comprar algumas vinhas velhas.

O Terrenus nasceu em vinhas situadas entre os 600 e os 750 metros de altitude, dentro do Parque Natural da Serra de São Mamede. Possui atualmente cerca de 15 hectares, distribuídos por sete parcelas. A região oferece um microclima único que favorece maturações lentas, resultando em vinhos frescos, com boa acidez e menor teor alcoólico. A maioria das vinhas de Rui Reguinga situa-se no lado norte da serra de São Mamede, junto à localidade de Porto Espada, situada perto da Portagem, onde está localizada a sua adega. Esta região tem uma biodiversidade muito rica ao nível da flora e da fauna. É uma zona com muitos castanheiros e cerejeiras e menos sobreiros do que o resto do Alentejo. Ao nível da fauna um animal acabou por condicionar as vinhas neste território. Para proteger as vinhas do javali, todas tinham de ser muradas. Por isso, todas as vinhas que Rui Reguinga adquiriu são emparedadas. “Eu tenho que continuar a fazer isso, mantendo os muros sempre fechados”, frisa.

A serra de São Mamede tem também um microclima diferente do Alentejo e da Beira Baixa, com uma maior pluviosidade e, consequentemente, maior vegetação e riqueza dos solos. Por outro lado, é um terroir onde predomina a pequena propriedade e onde as vinhas têm normalmente um a quatro hectares e isso salvou-as. Depois da entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE) começaram a surgir incentivos ao arranque de vinhas e subsídios para plantar vinhas novas, movimento que todo o Alentejo aproveitou para expandir as áreas de vinhas. Mas foi um desastre para as vinhas velhas, que foram arrancadas em grande número. As vinhas velhas da serra de São Mamede não entraram neste movimento, pois eram vinhas com áreas reduzidas, quase todas muradas, sem viabilidade económica para o arranque e nova plantação, pois não permitiam introduzir a mecanização. E, assim, “estas vinhas não foram arrancadas, porque, mesmo a vinha nova, não era compensadora”, explica Rui Reguinga. Assim, as vinhas velhas foram preservadas durante algum tempo na serra de São Mamede. Mas no novo milénio estas vinhas começaram a correr o risco de extinção, devido à idade adulta dos seus proprietários e ao facto de não conseguirem tirar rentabilidade delas. Foi nesse cenário que Rui Reguinga surgiu, assumindo o papel de guardião das vinhas velhas da serra de São Mamede.

As primeiras duas parcelas do Terrenus adquiridas por Rui Reguinga em 2004 são vinhas muito velhas e cultivadas ao estilo francês de clos, delimitadas por muros de pedra. Com solos xistosos a norte e graníticos a sul, as vinhas têm uma média de idade de 40 anos para o Terrenus, 90 a 100 anos para o Terrenus Reserva e vinhas centenárias para os vinhos de parcela única. Todas as castas plantadas são portuguesas, com variedades brancas como Arinto, Fernão Pires, Bical e Moscatel Branco, e tintas como Trincadeira, Alicante Bouschet, Aragonez e Castelão, entre outras. A primeira vinha que comprou é “a mais dramática, pois é a mais alta que eu tenho, a 760 metros”. É desta vinha que é elaborado o vinho branco “Vinha da Serra”, chamado assim por estar de frente para a serra de São Mamede. No início queria fazer um vinho DOC, mas chumbou, pois, o regulamento apenas permite que as vinhas estejam até aos 700 metros. E Rui Reguinga brinca com a situação, dizendo que é preferível fazer um vinho regional alentejano e comunicar que as vinhas estão a mais de 750 metros, até porque “eu também não vou baixar a vinha”.

A mesma está implantada em 10 terraços, com muros de pedras, semelhantes aos existentes no Douro, pois a inclinação do terreno é elevada e está virada a sul. É uma vinha centenária, com cepas com troncos grossos, tendo algumas delas quase 150 anos, perfeitamente adaptadas ao local e com uma grande diversidade de castas, destacando-se a Bical e a Tamarez, e onde também existe Baga, entre muitas outras castas. São castas antigas portuguesas pouco comuns hoje em dia no Alentejo e devem ter vindo para este local pela proximidade das Beiras, de onde provinham muitos dos trabalhadores sazonais (os “ratinhos”) que vinham trabalhar nos campos alentejanos e que devem ter trazido algumas varas das suas aldeias. Por vezes morrem algumas videiras, especialmente, pela falta de água, mas Rui Reguinga vai tentando manter a biodiversidade, fazendo mergulhias e usando as varas das cepas antigas para fazer algumas replantações. A inclinação do terreno e as cepas centenárias em vaso não permitem a entrada de tratores e por isso é toda tratada à mão. Rui Reguinga esclarece que a primeira coisa que altera logo que adquire uma nova vinha é “acabar com aplicação de herbicida”. Nesta zona era muito comum usar-se, pois os antigos donos “eram pessoas com alguma idade, não tendo já capacidade para eliminar as ervas daninhas”. O regresso da biodiversidade às vinhas é evidente, nascendo diversas ervas espontâneas, como os orégãos com aroma inebriante. Por isso, Rui Reguinga sente que está a fazer um labor que pode não ser um trabalho para enriquecer “do ponto de vista financeiro, mas é gratificante ver que estas vinhas estão preservadas”, sendo ele o continuador de uma série de trabalhadores que as plantaram e cuidaram ao longo de dezenas de anos. Por isso, o seu legado é “preservar as vinhas velhas e salvá-las, no fundo”, mantendo esta biodiversidade de castas policlonais muito diferentes das atuais.

Rui Reguinga revela que dentro deste território “há várias realidades” e o mais interessante “é a diversidade de vinhas e de estilos de vinhos que podemos criar aqui”. Existem vinhas expostas a norte, este, oeste e sul, em terrenos xistosos (zona este) ou graníticos (zona oeste), vinhas de encosta, vinhas nos vales e vinhas nos planaltos, com altitudes que variam dos 500 aos 760 metros. Nos anos 90 as vinhas mais procuradas “eram as vinhas expostas a sul, pois as uvas amadureciam mais depressa”. Em 2004 Rui Reguinga decidiu apostar na zona norte da serra, que “era o lado onde ninguém queria estar, era uma zona de maturações tardias, vinhos com menos álcool, vinhos mais ácidos, e agora é aquilo que o mercado quer”.

Rui Reguinga apresentou recentemente dois vinhos que mostram novamente as potencialidades das vinhas da serra de São Mamede. O “Terrenus Reserva Vinhas Velhas tinto 2019” é um lote proveniente de vinhas velhas com idade média a rondar os 100 anos, com condução tradicional em “taça”, plantadas em solos xistosos com alguns afloramentos graníticos. É elaborado a partir de diversas castas autóctones provenientes das vinhas da serra, da Ammaia, do Reguengo e de São Julião. A fermentação decorreu em lagares e balseiro de carvalho, com uma maceração prolongada de quatro semanas a que se seguiu um estágio de 18 meses em barricas de carvalho francês. O “Terrenus Vinha da Serra branco 2023” é oriundo da sua vinha mais alta, a mais de 750 metros, com cepas de diversas castas com mais de 100 anos. Fermenta com leveduras indígenas em cuba de cimento e estágio posterior de oito meses em barricas de 500 litros de carvalho francês.

Em conclusão, Rui Reguinga tem realizado um trabalho notável ao preservar e valorizar as vinhas velhas, prestando homenagem a todas as gerações que as cuidaram desde o século XIX. Apresenta vinhos de identidade marcante, genuínos e artesanais, evidenciando todo o potencial das cepas antigas da serra de São Mamede em vinhos de lote ou de uma vinha singular.

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