Diário do Alentejo

João Canena: o maior produtor de vinho de talha do Alentejo apresenta novos projetos

19 de janeiro 2025 - 08:00
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

A família Canena tem uma larga tradição no mundo do vinho. Recuperaram duas adegas tradicionais em Cuba e Vidigueira que são autênticos “santuários do vinho de talha”. Pretendem ainda construir dois hotéis vínicos junto a essas adegas.

 

Texto Manuel Baiôa

 

História familiar ligada ao vinho A família Canena está ligada ao vinho na região de Cuba há pelo menos três gerações. O avô materno de João Canena, João António Abundância, conhecido por “Kika”, era negociante de palha e de gado, mas também fazia vinho na sua adega particular localizada em Cuba, na casa onde hoje se situa o Museu Literário Casa Fialho d’Almeida. Segundo João Canena, o seu avô “fazia pelo menos 10 mil litros por ano para vender e para o consumo da família e dos trabalhadores que colaboravam com ele – o vinho do trabalho”.

No final dos anos 70, o seu pai, João Bernardo Ferreira Canena, foi feitor do Vale de Rocim, acabando por comprar a propriedade com o seu sogro anos mais tarde. Nesse local dedicou-se a várias atividades agrícolas tradicionais e inovou instalando as primeiras grandes estufas da região. Mas também plantou cerca de 70 hectares de vinha. Uma parte das uvas era vendida para a cooperativa da região e no final dos anos 80, início dos anos 90, também para as Cortes de Cima, “chegando um quilo de uvas a valer 350 escudos, valor que nunca mais foi atingido nesta zona”, conforme lembra João Canena. No entanto, também faziam vinho de talha para vender localmente, enchendo garrafões que se vendiam facilmente e chegando a engarrafar algum vinho com o nome “Casa Agrícola Vale de Rocim”.

Em 1989 venderam Vale de Rocim e compraram a Quinta da Pigarça, à saída de Cuba em direção a Alvito. A nova propriedade tinha um laranjal e cerca de nove hectares de vinha velha, pelo que continuaram a elaborar vinho e a vender localmente. Nesse período de grande crescimento do vinho alentejano chegaram a vender uva para a José Maria da Fonseca, para a J.P. e a outras grandes casas que, entretanto, se instalaram na região. Nessa altura usava-se a talha para elaborar os vinhos, mas também grandes toneis. Como as vinhas tinham um compasso muito estreito, não compatível com a mecanização, reestruturaram a vinha, plantando 25 hectares no início do século XXI. Em 2003 instalaram uma nova adega com recipientes em inox na Quinta da Pigarça, mas não abandonaram a talha.

 

Os vinhos de talha de João Canena

 

João Canena estudou na Escola Agrícola de Serpa e quando terminou o curso, em 1997, decidiu fazer o seu primeiro vinho de talha. Já tinha ajudado o pai e o avô na elaboração de vinhos, mas dessa vez quis ser ele a decidir todas as etapas. Disse ao pai: “Vou fazer uma talha de branco e outra de tinto e vou vender cada garrafa a mil escudos”, valor pelo qual o pai vendia um garrafão de cinco litros. Esmerou-se na tarefa e conseguiu vender todas as garrafas, sendo a maioria adquiridas pelos famosos restaurantes lisboetas Gambrinus e Cimas English Bar. A partir daí, conta João Canena: “Nunca mais parei. Tive anos que correram melhor e outros que correram pior”.

Hoje, João Canena é conhecido, fundamentalmente, por ser o principal produtor de vinho de talha do Alentejo, elaborando todos os anos mais de 100 mil litros, sendo a maioria certificado como DOC Talha. Tem neste momento cerca de 200 talhas espalhadas por três centros de vinificação: a Quinta da Pigarça (Cuba), a Adega do Canena (antiga Adega do Barreto, Cuba) e a Adega Museu do Vinho de Talha (Palacete Sotto Mayor, Vidigueira). Produz também vinho com técnicas modernas em inox na Quinta da Pigarça e em adegas arrendadas.

João Canena tem quase 30 anos de experiência no vinho de talha e considera que “os melhores vinhos são elaborados nas talhas grandes, nas de 1300 a 1500 litros”. Quanto à impermeabilização das talhas, revela que a pesgagem tem mudado ligeiramente. No passado usava-se praticamente só “pez louro (resina natural de pinheiro bravo) com uma pinguinha de azeite e um bocadinho de mel”. Mas este revestimento “marca muito os vinhos, ficando mais resinosos”. Assim, nos últimos anos, passou a juntar-se “mais cera de abelha”, pois é mais neutra e não marca tanto os vinhos. As castas mais aptas a utilizar em diferentes tipos de vinho dão sempre azo a intensa discussão. Para João Canena, as castas mais indicadas para o vinho de talha são as tradicionais e mais enraizadas na região, as que se encontravam nas vinhas velhas. Para o tinto utiliza, principalmente, Aragonês, Trincadeira Preta, Tinta Grossa, Moreto, Alfrocheiro e Castelão, e, para o branco, Perrum, Antão Vaz, Arinto, Roupeiro e Rabo de Ovelha. Por isso, nos últimos anos tem apostado na plantação de várias vinhas com as castas tradicionais da região. Para os vinhos convencionais vinificados em inox utiliza também as castas modernas, como Syrah, Petit Verdot, Petit Syrah e Touriga Nacional nos tintos e Alvarinho, Chardonnay e Verdelho nos brancos. Já tem feito algumas experiências com estas castas modernas em talha. Por exemplo, o “Syrah dá um vinho de talha brutal, fino e suave nos primeiros tempos, mas depois perde corpo e torna-se muito delgado”. Não é o verdadeiro vinho de talha alentejano.

João Canena e a sua família controlam mais de 200 hectares de vinha, sendo 50 arrendados em Águas de Moura, estes destinados a vender uva aos operadores de Setúbal. Quanto às vinhas do Alentejo, situam-se em Cuba, Vila Ruiva, Ferreira do Alentejo, Serpa e Redondo.

 

Portefólio

 

As marcas de vinhos desta empresa estão divididas em vinhos de vinificação moderna e em vinhos de talha, produzindo branco, tinto e rosé. Assim, nos primeiros surge o vinho de entrada de gama “Garça Real”, seguido do “100 Marias” e, por fim, o “Quinta da Pigarça”. Está previsto para breve o lançamento de uma nova marca: “Maria da Vidigueira”. Já em relação aos vinhos de talha, comercializam as marcas “Quinta da Pigarça” e “Canena”. Por vezes também fazem lançamentos em parceria com outras empresas, como foi o caso do vinho de talha “O Visconde Indomável”, dedicado a Francisco Correia de Herédia, visconde da Ribeira Brava, figura marcante da história de Portugal e de Vidigueira, sobre o qual se realizou um documentário com o mesmo nome.

Vinificam cerca de 200 talhas anualmente, e muitas delas são para abrir e vender localmente a partir do São Martinho, em longas noites de cante e petiscos nas três adegas referidas anteriormente. Contudo, as melhores talhas são para engarrafar. “Depois de muitas provas e reuniões são escolhidas, todos anos, as 15 talhas que mais se destacaram para engarrafar na marca ‘Canena’, o nome da família”, revela João. As restantes talhas são destinadas ao vinho “Quinta da Pigarça”.

 

As novas “catedrais do vinho de talha”

 

Recentemente a família Canena decidiu avançar para a compra de algumas adegas emblemáticas da região. Em 2018 adquiriu a antiga adega do Barreto, em Cuba. Uma adega tradicional com dois lagares de pisa a pé, diversas talhas antigas, depósitos de cimento e com um alvará de destilaria desde 1937. Uma joia que estão a recuperar e a explorar com diversas abordagens de enoturismo. Nesta adega têm também algumas curiosas barricas de barro do início do século XIX, que trouxeram da Herdade do Cabeço de Azinho (Serpa), do visconde de Lobão, que o professor Virgílio Loureiro propõe que se chamem “pipalhas”. Está ainda previsto a médio prazo construir um hotel ao lado da adega, o Cuba Wine Residence, com 29 suites.

Em 2017 compraram o palacete Sotto Mayor na Vidigueira, que têm vindo a recuperar progressivamente. Este grandioso edifício foi um convento no século XIV, existindo ainda um altar, onde hoje há uma mercearia. No século XIX a família nobre Sotto Mayor Figueira adquiriu este edifício. Aumentaram o mesmo e construíram o primeiro andar, onde no rés-do-chão funcionava uma enorme adega com dezenas de talhas e um lagar de pisa a pé. Neste momento está recuperado a maior parte do piso térreo, onde existem dois longos corredores, com lindas abóbodas de tijolo de burro e onde estão colocadas dezenas de talhas centenárias. No fundo dos dois corredores abre-se uma enorme sala, onde está o antigo lagar, que agora serve de cozinha. Ainda falta recuperar o quintal e o primeiro andar do edifício, onde se pensa construir um boutique hotel vínico. Neste momento este espaço destina-se à vinificação de vinho de talha e abre sob marcação para diversos eventos culturais, gastronómicos e vínicos. A breve prazo está previsto abrir também como restaurante e mercearia. É, sem dúvida, uma das adegas mais bonitas de Portugal e, quando estiver totalmente recuperado, um local de excelência para o turismo do Alentejo. João Canena tem várias ideias para este espaço, como, por exemplo, realizar uma “Talha Wine Fest” neste edifício e no largo em frente.

Em suma, a família Canena tem apostado no vinho de talha enquanto cerne do seu negócio. Adquiriram talhas por todo o Alentejo e exploraram as várias potencialidades deste vinho histórico. Quando conseguirem recuperar totalmente estas duas adegas centenárias transformar-se-ão em “catedrais do vinho de talha”, onde os petiscos, o vinho e o cante se unirão para levar mais longe a cultura do Alentejo.

 

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