António José Espadinha Monte, natural de Peroguarda, freguesia de Ferreira do Alentejo, “foi um leitor e colecionador de livros”. Era assim que se definia, conta--nos Maria Natércia Pereira, amiga e vizinha desde sempre. Mas rapidamente percebemos que a singeleza da definição ganha voz nas memórias daqueles que com ele privaram através do engajamento com a cultura local, profundamente rural, do século XX. Em 1970, é recordada a Festa das Flores da aldeia, celebração que, desde os anos 80, se tem vindo a perder. As ruas eram decoradas, quer com flores naturais, quer com flores de papel, havendo a atribuição de prémios por um júri, cuidadosa e carinhosamente nomeado por António Espadinha. Era o tempo em que se ia à ribeira buscar as taboas e os juncos para se fazerem as cordas para as decorações. Tudo era preparado com rigor e preceito. Também, nesse mesmo ano, a propensão para a escrita revelou-se publicamente, tendo-lhe sido atribuído um prémio nos Jogos Florais da, então, “Emissora Nacional”, prémio entregue num espetáculo transmitido pela televisão. Em 1973, organiza uma exposição de artesanato na Casa do Povo de Peroguarda, na altura em que Marcello Caetano, presidente do Conselho de Ministros, visita a aldeia a convite das casas do povo e dos agricultores da região.
As projeções de cinema, nas paredes das casas, no largo da sua rua, são recordadas pelos vizinhos: as touradas e demais curiosidades eram partilhadas e comentadas. As emissões da “Rádio Fonte Faústa” são, igualmente, relembradas. Culto, inteligente, brincalhão e com uma curiosidade e vontade de aprender ao longo da vida são alguns dos testemunhos recolhidos, daqueles que com ele conviveram, e que caraterizam António Espadinha.
Nasceu a 13 de setembro de 1940, tendo efetuado os primeiros estudos liceais no Colégio Nun’Álvares, na sede do seu concelho, acabando por completá-los em Lisboa, no Colégio Moderno, facto que agradece à sua tia paterna. Frequentava o Instituto Superior Técnico quando foi recrutado para o curso de Oficiais Milicianos da Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Em julho de 1963 foi mobilizado para o Ultramar e, em novembro desse mesmo ano, embarcou para Moçambique, tendo permanecido dois anos na cidade de Tete como oficial de transmissões do Batalhão de Artilharia n.º 562. De regresso a Portugal, trabalhou na Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa e em Beja, passando a exercer funções de gerente da agência de Ferreira do Alentejo de 1982 a 1994.
Preocupado com o desenvolvimento cultural dos seus conterrâneos, promoveu diversas iniciativas locais, como o teatro de amadores e outras festividades ligadas à cultura. Integrou também uma comissão organizadora de Jogos Culturais, promovidos pelo município de Ferreira do Alentejo. Fruto da sua colaboração com o “Jornal de Ferreira”, da responsabilidade da autarquia, durante mais de 20 anos, resultou a publicação de um conjunto significativo de crónicas, nas quais retrata gentes da sua aldeia, costumes de outros tempos e grava-se no papel memórias fotográficas de paisagens do Alentejo. Destaca-se a figura de Mário Beirão, residente em Peroguarda até aos três anos de idade, a “Ti Pinheiro”, lavadeira, e a senhora Ana Mira, trabalhadoras na casa de família. A humilde comerciante “Luísa Pereira” e suas histórias, "O Relvinhas", menino pobre e doente, obrigado a trabalhar e que acaba por emigrar.
Publicou, em 2009, o livro Dois Anos em Tete – Memórias de um Alferes Expedicionário, no qual retrata, através de um registo digno e colorido, as vivências em África, num altura em que, segundo António Espadinha, ainda se vivia uma “paz podre”, o que fez dele um não combatente. Fazia chegar ao pai, de Moçambique, gravações em bobines, com a sua voz, contando as suas histórias de guerra. Em 2018, o livro Vinte Galinhas de Bigode e Outras Histórias surge com o propósito de coligir as crónicas publicadas no “Jornal de Ferreira”, apresentando, contudo, três textos inéditos.
Após a reforma, continuou a viver em Peroguarda, dedicando-se à agricultura, tendo falecido em junho deste ano. Resguardado, na sua casa, com os seus amigos, com os seus livros, fotografias, objetos, que com ele dialogaram e que, com incomensurável estima, os guardou na alma, porque como tantas vezes dizia “(...) a morte só existe verdadeiramente quando esquecemos os que morreram...”.
António Espadinha revelou, através dos seus textos, um profundo conhecimento da cultura local, transmitindo-as na sua escrita de forma ímpar. Como um colecionador de memórias, retrata com uma sensibilidade única o amor à sua terra.
Biblioteca Municipal de Ferreira do Alentejo