Diário do Alentejo

“Mondadeiras”: um vinho que homenageia o cante e as tradições alentejanas

05 de fevereiro 2024 - 08:00

O vinho “Mondadeiras” nasce em Corte Sines, uma zona quente e seca do concelho de Mértola, mas onde frutificam uvas e vinhos de grande qualidade, que mostram a resiliência e o saber do povo alentejano.

 

Texto | Manuel BaiôaFotos | Ricardo Zambujo

 

A herdade de São Salvador situa-se em Corte Sines, no concelho de Mértola, na margem esquerda do rio Guadiana. Está inserida no Parque Natural do Vale do Guadiana, numa zona árida, mas onde é possível produzir frutas e uvas de grande qualidade através de uma boa gestão da água. Maria José Rodrigues Palma, médica em Serpa, herdou esta herdade de 450 hectares recentemente e decidiu dar seguimento ao projeto iniciado pelo seu avô, José Rodrigues Palma, e pelo seu pai, Matias José Palma, numa propriedade com policultura, com montado, medronheiros, pastagens e, mais recentemente, com uma vinha.

Maria José Rodrigues Palma conta que seu avô “era muito católico” e bem integrado na comunidade de Corte Sines, “tendo doado o terreno para a Igreja e para o cemitério” que se encontra no meio da herdade. O seu pai deu um grande impulso à propriedade, tendo edificado a barragem que rega as várias produções. Para além disso, “construiu vários diques e pequenas represas no barranco e plantou diversas árvores de fruto ao longo do curso de água, romãzeiras, figueiras e ameixeiras”. Aproveitou a topografia da região e as curvas de nível para direcionar e reter a pouca água que chove nesta zona. Em 2015 ainda iniciou um novo projeto, a plantação de uma vinha na herdade de São Salvador. Nos anos 70 o seu pai já tinha tido uma vinha noutra propriedade, em Balanches, da qual produzia um vinho para a família e para os amigos.

Nos primeiros dois anos de produção, após receberem a herdade de São Salvador como herança, a uva foi vendida para outros operadores da região, mas, posteriormente, Maria José Rodrigues Palma, o marido, Carlos Bettencourt, e os filhos, Maria, António e Ana, decidiram que iriam engarrafar o seu próprio vinho. O engenheiro Luís Bettencourt, cunhado de Maria José, cuida das vinhas, sendo assim um projeto familiar e com um grande envolvimento dos habitantes de Corte Sines, conforme pudemos comprovar na nossa visita.

Neste momento estão plantados 11,5 hectares, com as castas brancas Arinto, Antão Vaz, Verdelho e Chenin Blanc, e as castas tintas Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Touriga Franca, Syrah, Aragonez, Trincadeira e Cabernet Sauvignon. A vinha está implantada num terreno xistoso esquelético, nas zonas mais baixas da herdade, para assim aproveitar melhor a água da chuva. No entanto, têm de recorrer à rega e a mesma chega à vinha através de gravidade, sem bombagem, “pois há uma diferença de 10 metros entre a cota da barragem e a vinha”. Matias José Palma fez um levantamento topográfico exaustivo da herdade, implantado cada cultura nos locais mais propícios. A orientação da vinha é quase toda “norte-sul, por causa do ensombramento, às duas da tarde, quando faz mais calor e por causa dos ventos dominantes, para evitar o escaldão das uvas”. Quando há suão, isto é, um vento de sul ou sueste que transporta uma massa de ar quente e seco, “temos de regar para proteger as plantas”. Na vinha todos os trabalhos são feitos de forma manual. Na poda não usam máquina pré-podadora, praticam uma poda manual, tentando “criar um ensombramento natural dos cachos, com a rama, para assim protegê-los da inclemência do clima, o que, obviamente, encarece muito mais os custos da vinha”. A vindima também é manual, o que traz várias vantagens ao nível da qualidade, pois “o ser humano é seletivo, já a máquina não escolhe nada”. Com a apanha manual “identificamos uvas com doenças, uvas secas, há logo uma seleção”, revelou Luís Bettencourt.

A margem esquerda do rio Guadiana, no concelho de Mértola, é uma das zonas mais secas e quentes do País, o que traz grandes desafios à cultura da vinha, pois tem de se procurar os locais mais frescos e com mais água para conseguir obter boas uvas. Maria José encara este desafio com otimismo, pois “o inconveniente que é a falta de água, o calor e a pobreza dos solos, é o mesmo que eu sinto em relação à cozinha alentejana e às ervas aromáticas. Nós temos de virar isso a nosso favor, mostrando a nossa qualidade”. A escassez também pode ser uma virtude. “Não produzimos muita uva, mas a que nasce é de grande qualidade”. Por outro lado, sente que é “urgente criar uma sub-região DOC em Mértola, que valorize as características das uvas e dos vinhos desta microrregião”, pois produz-se vinho de elevada sofisticação, num ambiente difícil, à semelhança da Borgonha e da Champanhe, embora nestas duas regiões o problema seja o frio, e não o calor, como acontece em Mértola. Portanto, nestas regiões extremas podem nascer vinhos de grande qualidade, e por isso têm surgido vários produtores no concelho de Mértola no novo milénio, sendo que a vinha da herdade de São Salvador é a única na margem esquerda do rio Guadiana.

Neste momento a vinificação dos vinhos é feita numa adega externa, sob a supervisão do enólogo Luis Morgado Leão, mas existe um projeto a médio prazo de edificar uma adega e um enoturismo em Corte Sines que envolva não só os vinhos, mas os percursos pedestres, o rio e a riqueza do meio ambiente do Parque Natural do Vale do Guadiana.

 

“Mondadeiras”

 

Maria José disse que no início de 2021, quando estavam a escolher o nome que o seu vinho deveria ter, “receberam a triste notícia da morte” do seu amigo “Zeca Torrão”. Por isso, o vinho “Mondadeiras” é uma homenagem ao cante alentejano e às mulheres, mondadeiras, que, com ele “vão cantando e rezando”. “Mondadeiras” também evoca um trabalho manual que representa bem a forma como este vinho é elaborado.

O nome “Mondadeiras” remete-nos para uma das principais atividades cíclicas da agricultura tradicional, a monda, que era efetuada por ranchos de mulheres, as mondadeiras, que recebiam um salário mais baixo do que os homens, mas que, mesmo assim, cantavam para alegrar o seu dia de trabalho. A monda consistia em arrancar à mão, ou com um sacho, as ervas nocivas às sementeiras, que cresciam, principalmente, nas searas de trigo, cevada e arroz. Na linguagem da época evitava-se que as ervas daninhas “roubassem” aos cereais a “comida que estava na terra”. Hoje em dia o controlo das ervas nocivas “indesejadas” é feito por outros métodos na agricultura moderna convencional, nomeadamente, através de herbicidas ou de vários tipos de máquinas que cortam e arrancam as ervas infestantes. No entanto, o atual movimento da agricultura regenerativa e biológica procura regressar a alguns métodos antigos, como o uso de animais que comem essas ervas, como acontece na herdade de São Salvador, onde existe um rebanho de 800 ovelhas. Portanto, “Mondadeiras” é um nome que nos remete para o passado do Alentejo, mas também para o presente e o futuro da região, que se pretende em harmonia com o entorno e o ambiente.

O primeiro vinho que saiu para o mercado foi o tinto “Mondadeiras 2020”. Da colheita de 2021 já saiu o tinto e o branco, e, recentemente, foi lançado o “Mondadeiras branco 2022”, todos vinificados e estagiados em inox. Brevemente irá para o mercado o primeiro reserva da colheita de 2010, que tem estado a estagiar em barricas de carvalho francês.

Portanto, o vinho “Monda-deiras” é uma homenagem ao Zeca Torrão, autor do tema “Mondadeiras”, ao trabalho manual, à resiliência do povo alentejano que consegue fazer muito com pouco, e ao convívio fraterno à mesa, com histórias e com o cante alentejano.

 

“MONDADEIRAS BRANCO 2022”

Vinho Regional AlentejanoHerdade de São Salvador, Corte SinesCastas: Antão Vaz e Arinto

Apresenta aromas citrinos, que se interlaçam com notas de fruta mais madura de cariz tropical. Na boca mostra uma boa acidez e textura, e alguma mineralidade. Termina com um final longo e envolvente. Um excelente branco para conjugar com diversos pratos da gastronomia tradicional alentejana.13% vol./PVP: 9 €

 

“MONDADEIRAS TINTO 2021”

Vinho Regional AlentejanoHerdade de São Salvador, Corte SinesCastas: Alicante Bouschet e Syrah

O aroma mostra boa complexidade, com notas de frutos do bosque maduros, esteva e especiarias. Na boca é texturado, com os taninos redondos e sedosos. Termina longo e complexo, com um toque balsâmico.14% vol./PVP: 9 €

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