Diário do Alentejo

keyline

15 de dezembro 2023 - 09:35
Sistema de cultivo pode travar efeitos das alterações climáticas na agricultura de sequeiro alentejana?Foto| Ricardo Zambujo

A aceleração da mudança climática no Alentejo exige uma adaptação da agricultura às novas condições ambientais. Por outro lado, o uso intensivo e desadequado dos solos ao longo de várias décadas levou à sua degradação e ao perigo da desertificação em alguns locais. Para superar estes problemas Francisco Mata apostou numa abordagem holística na sua propriedade agrícola em Mombeja, adotando o sistema de cultivo keyline e os princípios da agricultura regenerativa e biológica.

 

Texto Manuel Baiôa

Foto Ricardo Zambujo

 

As áreas irrigadas pela água de Alqueva representam uma ínfima parte dos campos agrícolas e florestais do Alentejo. Nas explorações agrícolas fora do perímetro de Alqueva os agricultores têm vido a ser afetados nos últimos anos pela crescente diminuição das chuvas, que passaram, em muitos locais, de uma média anual de 550 a 600 milímetros para 350 a 400 milímetros. Esta situação obriga a repensar a abordagem da exploração agrícola e da gestão da água. Nestas propriedades os agricultores apenas podem contar com a água da chuva, com a água das charcas e com a água subterrânea captada em furos, que, na maior parte das vezes, não chega para as necessidades das culturas já instaladas.

O engenheiro Francisco Mata tem uma larga experiência enquanto técnico de viticultura, pois trabalhou entre 1989 e 2019 na Associação Técnica dos Viticultores do Alentejo (Ateva), sendo nos últimos 10 anos o seu secretário executivo. Desde 2019 dá apoio técnico a vários viticultores em nome individual em vários concelhos do Alentejo. Durante todos estes anos adquiriu um vasto conhecimento e experiência sobre a agricultura moderna. Contudo, após arrendar a Herdade do Selão, junto a Mombeja, no concelho de Beja, deparou-se com uma série de problemas que a abordagem convencional não conseguia dar resposta.

 

A HERDADE DO SELÃO

A Herdade do Selão é uma propriedade com cerca de 30 hectares, tendo uma vinha com 12 hectares que foi plantada há 20 anos e que era regada a partir de uma pequena charca. Contudo, como realça Francisco Mata, nessa altura “a situação era completamente diferente do que temos hoje no Alentejo. Havia mais água”. Nesta propriedade havia água suficiente, tanto a subterrânea, como a que era armazenada na charca, “água que vinha de infiltração e chegava para as necessidades”. De facto, nos últimos anos houve uma diminuição significativa das chuvas, um aumento das temperaturas médias, não permitindo que a charca encha, o que inviabilizava regar com a regularidade necessária. Para agravar ainda mais a situação, a propriedade está num local alto, pelo que ficou fora do perímetro de Alqueva. Por isso, “não tendo água de Alqueva e não tendo água das captações subterrâneas havia que alterar o desenho das vinhas e seguir uma nova abordagem”.

Perante este problema, Francisco Mata decidiu participar no projeto “Pastagens regenerativas”, desenvolvido pela Esdime – Agência para o Desenvolvimento Local no Alentejo Sudoeste, para tentar “arranjar soluções para a agricultura de sequeiro do Alentejo no contexto das alterações climáticas que levam a que haja menos chuva e mais calor”. Por outro lado, “quando chove é com grande intensidade, levando a uma forte erosão. Não dando tempo a que a água se infiltre no solo. O desafio foi este. A equação para resolver foi esta”.

 

PLANTAÇÃO EM KEYLINE

Após várias formações no projeto de agricultura regenerativa, Francisco Mata encontrou o método de plantação em keyline. “É um sistema que é usado em zonas secas com escassez de água”, nomeadamente, na Austrália, na América Latina e, nos últimos anos, também em Espanha e Portugal. “Aparentemente a plantação parece que está à curva de nível, mas não está. Está aproximadamente à curva de nível, mas com um pequeno desnível de até dois por cento. Tem de ter algum desnível para a água da chuva se deslocar por gravidade”. Durante a preparação do terreno “é feito um sulco para recolher a água que é encaminhada para percorrer o terreno de forma lenta para dar tempo de se ir infiltrando, sem provocar erosão. A primeira prioridade é armazenar a água da chuva no solo, pois é mais barata e sustentável”. Portanto, “o objetivo prioritário é aproveitar ao máximo a água da chuva. Recolhê-la nas zonas onde ela escorre e por gravidade levá-la para zonas mais secas”.

As linhas de desnível encaminham a água de forma lateral ao desnível natural, fazendo com que a água se desloque mais devagar e permaneça mais tempo no solo para maximizar a infiltração. Desde modo evita-se também a erosão que destrói o solo arável. Mesmo assim, quando houver alguma chuvada, muita água não conseguirá infiltrar-se. Nestes casos, “a água que não se conseguir infiltrar será encaminhada lentamente para a charca, que será usada em momentos críticos de escassez de água”. No passado era normal chover neste local “450 a 470 milímetros por ano hidrológico. Mas neste ano estamos com 311 milímetros. É muito pouca água. Há um déficit de chuva muito grande”. Mas, “estes 300 milímetros representam 300 metros cúbicos por hectare, pelo que podemos ver o problema de outra forma”.

A restruturação da vinha será realizada em três fases. A vinha mais antiga está plantada no sistema tradicional, convencional, não sendo possível alterar o sistema. Neste momento avançou-se com a primeira fase do projeto, restruturando-se a vinha, com o arranque de uma parte da vinha antiga e a plantação de 3,2 hectares com o sistema keyline. Plantaram-se as castas brancas Antão Vaz, Arinto, Roupeiro e Perrum e as castas tintas Touriga Nacional e Syrah.

A nova abordagem de Francisco Mata ao problema da seca e da degradação dos solos não se resume à plantação com o método keyline. Tem fundamentalmente uma perspetiva holística, assente na agricultura regenerativa e na conservação do solo, tendo um plano hidrológico, um plano de recuperação da biodiversidade e um plano de eficiência energética. Fez-se uma ripagem cruzada a um metro do solo, aquando da preparação do terreno para a nova plantação, “pois estou a restruturar uma vinha, pelo que é necessário intervir em profundidade para permitir a expansão do sistema radicular o mais possível”. Futuramente apenas “irei passar com um dente de riper antes das chuvas”, no outono, e “não mexo mais no solo”. Para proteger a terra e estimular a sua biodiversidade pratica uma agricultura biológica, plantando nas entrelinhas da vinha um coberto vegetal, nomeadamente, leguminosas e gramíneas, espécies de sistema radicular profundante e espécies com sistema radicular fasciculado que irão ajudar a infiltração da água. Este coberto vegetal protege ainda o solo da erosão e faz com que a “microbiologia do solo se refaça”, através de uma “maior fixação do carbono”. Por outro lado, “para melhorar o solo, não posso estar a colocar produtos químicos e fatores agressivos” da agricultura convencional. “Não uso um grão de adubo de síntese, nem um grama de herbicida, só trabalho com ovelhas”.

Em suma, o sistema de cultivo keyline e os princípios da agricultura regenerativa e biológica poderão ser uma das soluções para a agricultura de sequeiro alentejana enfrentar as alterações climáticas, preservando o solo para as futuras gerações e produzindo produtos de grande qualidade com sustentabilidade.

 

O sistema keyline

O sistema keyline é um dos métodos da agricultura regenerativa que visa melhorar a qualidade dos solos e a sua fertilidade. Um dos seus princípios fundamentais é a “plantação” de água, isto é, vai-se encaminhar a água da chuva pelo terreno para onde ela seja mais necessária. Consegue-se isto através de um adequado desenho do terreno, o que permite abrandar o escorrimento da água para aumentar infiltração da mesma no solo, reduzindo a erosão. Pretende-se que exista uma maior infiltração nos locais mais altos e secos, evitando-se a acumulação de água em locais mais baixos, onde antes se formavam grandes piscinas quando havia chuvadas fortes. Desde modo, a água vai-se infiltrando lentamente dos locais mais altos para os locais mais baixos, alimentando vagarosamente os ribeiros com água sem sedimentos, permitindo alimentar as plantas durante períodos mais longos. A água que não se infiltrar e que for escorrendo lentamente poderá ser armazenada em charcas, para futura utilização em alturas de seca. Portanto, pretende-se distribuir a água por toda a área semeada, melhorando a microbiologia do solo e evita-se a existência de linhas de forte escorrência que arrastam o solo arável para os ribeiros. Está especialmente indicado para zonas secas, com solos pobres e com algum declive, pois irá ajudar a descompactar a terra, infiltrar a água vagarosamente e encaminhá-la das zonas de maior aglomeração para zonas de menor acumulação.

Este método foi desenvolvido inicialmente pelo australiano Percival Alfred Yeomans (1905-1984) nos anos 50. O seu objetivo era reabilitar solos agrícolas degradados, secos e sazonalmente sujeitos a fogos florestais. Desde então tem sido adotado em várias regiões do mundo em terrenos agrícolas e florestais com algum declive, com distribuição errática da chuva, precipitações abundantes em determinadas alturas e solos degradados. Este sistema permite conservar a água da chuva que cai numa propriedade durante mais tempo, distribuindo-a de uma forma mais eficiente, aumentando a taxa de infiltração, enquanto se reduz o escoamento superficial e a evaporação, possibilitando uma melhoria significativa da fertilidade e estrutura dos terrenos, pois ao melhorar a distribuição da humidade no solo a atividade biológica é promovida, aumentando significativamente o teor total da matéria orgânica.

A implantação deste sistema nos terrenos agrícolas ou florestais inicia-se com um estudo topográfico do terreno que desenha curvas aparentemente niveladas, mas que efetivamente são de ligeiro desnível (1,5 a dois por cento), descendo a partir das zonas de acumulação de água mais elevadas, até às zonas de secura mais abaixo em cota. Por outro lado, desvia a água das zonas de forte escorrência para zonas mais secas. Estas linhas são as linhas de plantação ou de sementeira e são feitas com um equipamento (arado Keyline/Yeomans) desenvolvido para evitar o reviramento do solo superficial e desenhar pequenas galerias subsuperficiais, cinco centímetros abaixo da zona de solo arável. Este arado é utilizado apenas duas vezes por ano, uma na primavera e outra no outono, o que significa que em cada ano a profundidade de solo irá aumentar, principalmente, nos solos pobres, secos e delgados. A aplicação do sistema keyline permite ainda planear a localização de charcas e barragens, nos locais de cota mais elevada e nunca em rios ou ribeiras, usando os princípios do sistema para aumentar a área de captação dessas charcas.

O sistema keyline começou a ser utilizado em Portugal e no Alentejo em algumas explorações pioneiras, procurando-se fazer uma gestão inteligente do terreno agrícola. A Esdime – Agência para o Desenvolvimento Local no Alentejo Sudoeste tem sido uma das grandes promotoras deste método através do projeto “Pastagens regenerativas – Promover a adaptação climática, regeneração e sustentabilidade dos sistemas pecuários extensivos em territórios de elevado risco de desertificação ambiental”. Este projeto tem proporcionado diversas formações e ajudado os agricultores a adaptar e implementar este sistema à sua propriedade agrícola. O Alentejo tem sido particularmente afetado pela mudança climática e por um uso inadequado do solo. Donde, este projeto poderá ajudar os agricultores alentejanos na adaptação a um novo clima na região, na regeneração ambiental e na sustentabilidade da gestão agropecuária extensiva, em territórios de elevada aridez e suscetíveis à desertificação.

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