Texto Manuel Baiôa
A Adega Marel é uma empresa jovem de Amareleja que elabora vinhos com identidade regional, mas com ambição de chegar às mesas mais sofisticadas de todo o mundo.
David Morgado é arquiteto paisagista, mas decidiu, conjuntamente com os seus pais, Amândio Ramos e Maria Helena, avançar com um projeto vínico na terra dos seus avós maternos. Amândio Ramos é natural de Belmonte e tem uma empresa de distribuição de tabaco e bebidas no Algarve, mas ficou fascinado com a cultura do vinho de talha e sempre que ia à Amareleja corria algumas tabernas com o sogro, onde “partilhavam histórias e petiscos alentejanos com os amigos”.
No final de 2017 surgiu a oportunidade de concretizarem os seus sonhos e adquiriram uma empresa que tinha uma adega e sete hectares de vinha, denominada Sociedade Vitivinícola Courela dos Aleixos. Nessa altura apenas o avô de David Morgado, António Morgado, tinha alguma experiência no mundo dos vinhos, mas só fazia “duas talhas de vinho para consumo próprio, como é tradição na Amareleja”, conforme lembra o neto.
Por isso, sentiram necessidade de contratar o enólogo Tiago Macena para os ajudar a pensar e alavancar o novo projeto.
A ADEGA MAREL
Tiago Macena já tinha trabalhado no Alentejo entre 2007 e 2009, quando foi enólogo da Global Wines, na herdade Monte da Cal, no concelho de Fronteira. No entanto, nos últimos anos estava mais focado em vários projetos nas regiões das Beiras, Dão e Douro. Houve alguma hesitação em aceitar o desafio lançado por David Morgado, pela distância e pelo desconhecimento da sub- -região DOC Granja-Amareleja. No entanto, uma visita à Feira do Vinho e da Vinha de Amareleja, em dezembro de 2017, fê-lo abraçar esta parceria.
“O que me trouxe foi o desafio da talha. Nunca tinha vinificado assim. Nem no recipiente, nem sem controlo. Nunca tinha feito um vinho sem controlar tudo. Era uma nova filosofia de fazer o vinho que se abria”, revela Tiago Macena.
No início de 2018 começaram a trabalhar a estratégia da nova empresa, pois a vindima aproximava-se. Decidiram alterar os nomes comerciais dos vinhos, bem como a história e a filosofia dos mesmos, com novas técnicas e uma nova abordagem.
O primeiro nome escolhido foi Marel, que passou também a designar a adega. Este nome remete para uma das possibilidades da génese da palavra Amareleja. “Mareleia” era o local onde se concentravam os “Marel”, carneiros selecionados para o apuramento da espécie. Esta região foi repovoada entre os séculos XIII e XIV e em meados do século XV formou-se um núcleo populacional junto da capela de Santo António, padroeiro do gado e dos rebanhos.
“Pegando nessa história, começámos o nosso portefólio com a marca Marel”, revela David Morgado. Este nome identifica o local de origem do vinho e a continuação de uma tradição que passa de geração em geração, que esta casa quer manter. Por isso, decidiram manter a tradição dos vinhos de talha depois de provarem os vinhos que o avô fazia. Segundo Tiago Macena, “foi ele que nos ensinou a fazer o vinho de talha, seguindo a tradição local. E estando neste sítio só fazia sentido ter vinho de talha. Tínhamos nas talhas o nosso elemento diferenciador. Não fazia sentido apostar nas barricas, que é o que a maioria das empresas tem”.
Daí, quando começaram, dedicaram uma especial atenção ao vinho de talha. O avô é conhecido na vila como “Tonico”, e deu nome ao topo de gama da casa, de onde sai um vinho DOC Talha com caráter e autenticidade. Na vindima de 2018 começaram com as duas talhas do avô “Tonico”, mais uma que compraram. Neste momento já contam com 15 talhas que foram adquirindo em Amareleja.
Foi o senhor António Morgado que ensinou o enólogo Tiago Macena a filosofia dos vinhos de talha e dizia-lhe: “Não faça nada que ele faz-se sozinho. É só mexê-lo”. Ora, “eu estava treinado para intervir”, pois a formação de um enólogo passa por tentar “limar alguns desequilíbrios do vinho”. Mas a filosofia do vinho de talha é deixar a natureza e o ano fazerem o vinho, conectando--nos, assim, com o lugar e com uma ideia de sustentabilidade ambiental e de pegada ecológica reduzida. No vinho de talha todo o processo é realizado pelo ser humano, com pouca intervenção tecnológica e química, preferindo-se a qualidade à quantidade.
A empresa começou com os sete hectares de vinha adquiridas inicialmente, mas, entretanto, foram comprando pequenas courelas nas proximidades, tendo também plantado quatro hectares de vinha nova em 2020 e 2021. Neste momento têm 14,5 hectares, sendo a mais antiga de 1931. Cada vinha é denominada pelo nome do antigo dono, bem como cada talha. Por isso, quando estão a preparar a vindima, o planeamento pode passar por as uvas da vinha “Raimundo” fermentarem na talha “Tonico”. É uma forma de homenagear a memória do trabalho e a dedicação com que foram cultivadas as vinhas e como foram tratadas as talhas.
A SUB-REGIÃO DOC GRANJA-AMARELEJA
A sub-região DOC Granja-Amareleja estende-se pela totalidade do concelho de Mourão e por uma parte do concelho de Moura, delimitada pelo rio Guadiana e pela fronteira com Espanha. Tem um dos climas mais áridos e quentes de Portugal e com mais horas de sol. Tem grandes amplitudes térmicas ao longo do ano e um verão longo, de calor intenso. As terras são muito pobres, onde se destacam os solos mediterrânicos pardos e vermelhos de materiais não calcários e os solos mediterrânicos vermelhos de materiais calcários e litossolos, com algumas bolsas de textura arenosa.
A falta de água e de matéria orgânica provocam produções e rendimentos baixíssimos. Estas condições adversas originam vinhos de grande personalidade e carácter local, em que a casta Moreto, bem-adaptada a este contexto, tem um papel primordial.
Esta sub-região é reduto de algumas das vinhas mais velhas do Alentejo, algumas delas de pé-franco, reservas únicas de clones e variedades hoje quase perdidas. A Amareleja está ainda ligada à cultura ancestral do vinho de talha, que remonta à época romana e que foi tendo adaptações lentas até chegar aos dias de hoje. A cultura do vinho de talha continua a ter uma grande importância na sociabilidade e na vida social de muitas aldeias e vilas do Alentejo.
A técnica de vinificação em potes de barro foi sendo passada de geração em geração, tendo cada família os seus segredos sobre a maneira como fazem o vinho em talhas. Existem, portanto, várias nuances na maneira como cada casa faz o seu vinho, e as subtilezas variam ainda de aldeia para aldeia. Por isso, o vinho de talha apresenta uma grande riqueza e diversidade cultural devido à grande multiplicidade de técnicas de produção que cada produtor utiliza, à grande variedade de castas que são usadas, e, por fim, cada talha é única e irrepetível, aportando características ímpares aos vinhos.
As vinhas da Adega Marel situam-se na margem esquerda do Guadiana, entre Amareleja e Granja, numa zona conhecida por Courela dos Aleixos, na antiga herdade dos Aleixos. Estas “courelas” são parcelas de terras cultivadas, compridas e estreitas, que têm vindo a ser adquiridas nos últimos anos. As vinhas mais antigas não são aramadas, apresentando-se em vaso ou taça, para assim estarem mais protegidas do Sol.
Estas vinhas estavam tradicionalmente consociadas com o olival e eram de sequeiro, pelo que as suas produções eram extremamente baixas. Nos últimos anos a Adega Marel tem vindo a colocar rega nas novas vinhas, para conseguir manter uma produção mais uniforme e sustentável. As vinhas estão distribuídas por diversas parcelas, com vinhas de diferentes idades. A mais antiga foi plantada em 1931 e a mais nova em 2021.
São constituídas maioritariamente por castas regionais adaptadas há muito a esta região. A Adega Marel tem vindo a recuperar e a preservar as vinhas velhas compostas maioritariamente por castas nativas. Neste local o clima é quente e muito seco, mas é minimizado pela proximidade do rio Guadiana e da barragem de Alqueva.
Os solos são pobres, com grande diversidade, embora com predominância de solos franco-argilos e franco-arenosos e zonas de calhau rolado e seixos, mostrando que o leito do rio Guadiana passou por estas terras há milhares de anos. Quanto às castas, existem nestas courelas uma grande diversidade. Nas brancas destacam-se a Roupeiro, Diagalves (ou Pendura), Antão Vaz, Rabo-de-Ovelha, Manteúdo, Perrum e Encruzado. Já nas tintas encontramos Moreto, Castelão, Trincadeira, Alicante Bouschet, Aragonez e Touriga Nacional.
OS VINHOS
O primeiro vinho do portefólio da empresa chama-se Marel e apresenta-se nas variedades de branco, tinto e rosé. Estes vinhos são elaborados com técnicas modernas e utilizam as cubas de inox para a fermentação e estágio. Pretende-se apresentar um vinho fresco, que represente a Amareleja do século XXI, testemunha do seu território, mas moderno e atual.
O segundo vinho denomina-se Marel – Ilustre. Neste momento só está disponível o tinto, pois o branco apenas irá para o mercado nos próximos meses. O vinho é vinificado em inox e estagia posteriormente em talha. É uma forma inovadora de usar e rentabilizar as talhas, que de outro modo estariam vazias na maior parte do ano.
O vinho segue o processo convencional de vinificação em inox e depois a fase líquida vai estagiar durante alguns meses nas talhas. Os potes de barro são cobertos com uma tampa de acrílico, com um pouco de sebo para selar a talha, para não deixar entrar o ar. Segundo Tiago Macena, “este tempo de repouso amacia-lhe os taninos e dá-lhe textura, finesse, complexidade e um extra aromático, onde percecionamos terra”.
O terceiro vinho é o Manolito, que é uma homenagem ao tio, que faleceu pouco tempo antes de iniciarem esta aventura. Era um viajante apaixonado, que gostava de contar histórias das suas jornadas pelo mundo quando chegava à Amareleja e durante as viagens contava histórias do Alentejo e de Amareleja.
Nesse sentido pensaram em juntar no vinho Manolito a cultura de Amareleja, protagonizada pelo vinho de talha de tradição milenar, e a cultura internacional do vinho, materializada pela vinificação em inox com as técnicas contemporâneas. Assim, o vinho de talha e o vinho fermentado com práticas atuais misturam-se e formam uma simbiose, que o tio Manolito tão bem representava, surgindo nas versões branco e tinto. Foi uma experiência intuitiva, na qual as vinhas mais velhas são vinificadas em talha (técnica antiga) e as vinhas mais novas em inox (técnica atual).
O quarto vinho e topo de gama da casa é o Tonico. Como referimos anteriormente, este vinho é um tributo ao avô “Tonico” (António Morgado), que legou a técnica de produção de vinho de talha à nova geração. O branco é elaborado a partir de vinhas velhas das variedades regionais, nomeadamente, Antão Vaz, Diagalves, Roupeiro, Manteúdo e Perrum. O tinto é um monovarietal de Moreto, a casta mais emblemática da região. Neste vinho utiliza-se o processo de vinificação oxidativa em talha clássico do Alentejo.
As uvas são vindimadas à mão e depois de desengaçadas são colocadas dentro dos potes de barro e a fermentação arranca espontaneamente através da ação das leveduras nativas. Após o início da fermentação, as películas de uvas sobem à superfície e formam uma massa sólida (manta) que deve ser mexida com um rodo de madeira para a obrigar a mergulhar no mosto, para assim garantir a homogeneidade no processo fermentativo e potenciar a extração de cor, aromas e sabores e evitar que a talha rebente.
Esta operação é feita várias vezes por dia. Como apenas utilizam leveduras nativas a temperatura de fermentação não sobe muito, mas molham-se as talhas para baixar um pouco a temperatura. A fermentação só termina passado um mês, altura em que as massas assentam no fundo. O vinho fica até janeiro em contacto pelicular, altura em que se separa a fração líquida. Na parede da talha, sensivelmente a 20 cêntimos acima da base, existe um orifício onde se coloca uma cana com junça (planta ribeirinha com capacidades de filtragem), que até aquele momento está tapado com uma rolha de cortiça.
O vinho atravessa o filtro natural formado pelas massas de uvas e pela junça e sai, no início, um pouco turvo, mas progressivamente vai saindo cada vez mais límpido para uma vasilha. O vinho dessa vasilha deverá regressar à talha, para ser novamente filtrado até estar pronto a beber ou a ser transferido para um depósito para estabilizar antes do engarrafamento. Neste vinho utilizou-se apenas o vinho lágrima, o que escorreu, filtrado pelas próprias massas e pela cana com junça, sem recorrer ao vinho de prensa destas massas.
Esta casa utiliza a técnica clássica do vinho de talha alentejano, mas, para além do rigor no tratamento e escolha das uvas e da higiene rigorosa na adega, diferencia-se por colher as uvas um pouco mais cedo do que era habitual na região, apostando mais na frescura e numa graduação alcoólica moderada. Sendo Amareleja uma das terras mais quentes de Portugal, a data da vindima tem um papel crucial no vinho que se vai apresentar passado uns meses.
É um dos espetos em que a intervenção humana se torna decisiva no vinho de talha que vai nascer. David Morgado e Tiago Macena pretendem preservar a frescura e a elegância dos vinhos e por isso tem de haver um controlo de maturação rigoroso, no qual privilegiam mais o índice de acidez e o ph do que os açúcares que irão dar lugar ao álcool.
Tiago Macena dá o exemplo dos Moretos, que apanham “com 13,5 por cento de álcool e não como era tradição na Amareleja de apanhá-los com 16 por cento. O Moreto, pela sua natureza, amadurece mais tarde, mas tentámos preservar a frescura”. Nesse aspeto afastam-se um pouco da tradição local que privilegiava a concentração e o álcool elevad, e não tanto o equilíbrio e a frescura.
Em suma, para além da recuperação do vinho de talha, esta jovem empresa procura recuperar as vinhas velhas e as castas tradicionais, aliando práticas ancestrais da cultura da vinha e do vinho com outras mais modernas, o que os levou a plantar castas novas, com um espírito rigoroso e curioso de experimentação e aprendizagem na abordagem dos processos da viticultura e da vinificação. Produzem vinhos de Amareleja, mas são vinhos que podem viajar para qualquer mesa do mundo, pois são vinhos atuais, com identidade e caráter.