Texto Manuel Baiôa
A cultura da vinha e do vinho remontam, pelo menos, ao século VI a.C. na região do Alentejo, embora tenham sido os romanos que deixaram mais marcas na região, nomeadamente os instrumentos de trabalho, as prensas e os lagares para a fermentação, os dolias (dolium, talhas de grandes dimensões) para a fermentação e o armazenamento e as ânforas para o armazenamento e o transporte do vinho.
Nalgumas escavações arqueológicas já foram encontradas grainhas de uvas em cellas vinárias (local para o tratamento do vinho) nas villas de São Cucufate e Insuínha II (Vidigueira) e em Torre de Palma (Monforte).
O Alentejo tem sabido preservar os vinhos de talha até aos dias de hoje, mantendo no essencial o processo de vinificação trazido pelos romanos, há mais de 2000 anos. Esta técnica foi passando de geração em geração, de forma natural e, no essencial, quase imutável.
Na base do processo está, naturalmente, a talha, um recipiente redondo em forma de pote bojudo, feito em barro, com uma abertura na face superior, cozido num forno de lenha. O seu tamanho varia, com as maiores a poder conter até cerca de 2000 litros.
Ao longo dos séculos, a talha foi o recipiente onde se fez (e faz) vinho no Alentejo. Orlando Ribeiro referiu-se ao Alentejo como a “civilização do barro”, em oposição à “civilização da pedra”, no Norte do País. Aí, os lagares eram (e são) feitos em pedra.
No Alentejo, este material nunca abundou pelo que o Homem aprendeu a dominar a terra, material predominante, para satisfazer as suas necessidades. Com a terra, o alentejano construiu as suas talhas onde fazia o vinho.
O processo básico de vinificação oxidativa em talha mantém-se quase inalterado. As uvas são esmagadas numa mesa de ripanço, posteriormente colocadas dentro das talhas de barro e a fermentação arranca espontaneamente.
Após o início da fermentação, as películas de uvas sobem à superfície e formam uma massa sólida (manta) que deve ser mexida com um rodo de madeira para a obrigar a mergulhar no mosto, para assim transmitir ao vinho mais cor, aromas e sabores, e evitar que a talha rebente. Esta operação é feita várias vezes por dia.
Quando a fermentação termina, as massas assentam no fundo. Na parede da talha, perto da base, existe um orifício onde se coloca uma torneira. O vinho atravessa o filtro formado pelas massas de uvas e sai no início um pouco turvo, mas progressivamente vai saindo cada vez mais límpido para uma vasilha.
O vinho dessa vasilha deverá regressar à talha, para ser novamente filtrado até estar pronto a beber. Contudo, existem várias variantes sobre como fazer vinho de talha tradicional, mudando alguns aspetos de produtor para produtor e de aldeia para aldeia.
O uso da talha confere ao vinho uma outra dimensão. Ao revelar o barro, em que fermenta e estagia, surge um registo terroso de grande pureza, a que se acrescenta especiaria, provavelmente devido ao pez louro utilizado para impermeabilizar os potes.
O vinho de talha pode ser branco ou tinto. Apesar de em vias de extinção, existe ainda o chamado “petroleiro”, um vinho feito com castas brancas e tintas misturadas, de cor alaranjada.
Em virtude da vinificação oxidativa, o seu aroma é mais ténue e sem a fruta fresca dos vinhos modernos (particularmente nos brancos), pelo que devemos concentrar-nos mais no seu sabor. Conforme se costuma dizer: “não é para cheirar, mas para saborear”.
Na sua elaboração são utilizadas, essencialmente, as castas tradicionais da região, as que lá estão há mais tempo e estão mais bem adaptadas: Antão Vaz, Roupeiro e Perrum nas brancas; Aragonês, Trincadeira, Castelão, Tinta Grossa e Moreto nas tintas.
Os vinhos de talha mais tradicionais são elaborados a partir de vinhas velhas de sequeiro. Estas antigas vinhas em forma de taça, não aramadas, foram desaparecendo lentamente. Não eram alinhadas, nem regadas e não tinham clones selecionados.
O viticultor ia pedindo varas aos amigos e conhecidos que possuíam determinadas vinhas e castas afamadas. Estas varas eram plantadas ao lado de outras culturas, como, por exemplo, as oliveiras, em locais não muito férteis, mas com um nível freático capaz de alimentar a videira durante o verão. As vinhas tinham uma enorme diversidade de castas, chegando a ultrapassar as duas dezenas.
O viticultor procurava ter uma grande multiplicidade de variedades para se defender da variabilidade dos anos agrícolas, pois cada casta tem um ciclo de vida diferente, o que minimizava os problemas que afetam as vinhas em determinados períodos, como as geadas, as doenças e as chuvadas do fim do verão. Por outro lado, a grande diversidade de castas aportava características díspares de aroma, sabor, estrutura e acidez que ajudavam a compor o lote final.
Nos últimos anos os vinhos da talha recomeçaram a ser muito procurados, nomeadamente por um nicho de consumidores que privilegia o caráter, a autenticidade e, porque não, a história que cada um destes vinhos traz consigo. O vinho de talha, ao estar intimamente ligado à terra onde é produzido, é um reflexo perfeito do terroir e da cultura que lhe dá origem.
Quando bebemos um vinho de talha, bebemos efetivamente a história desse local. Por isso, o vinho de talha começou a ser olhado com outros olhos e como uma oportunidade de negócio, pelo que muitas empresas de referência começaram a fazer experiências. Isso levou a que um número progressivamente maior de produtores começasse a apostar na talha como um produto diferenciador.
Começaram então a surgir no mercado vários vinhos de talha, engarrafados e certificados pela Comissão Vitivinícola Regional Alentejana, que têm tido muita procura nos mercados internacionais. Estes mercados procuram um produto inovador, mas, ao mesmo tempo, com uma longa tradição e história. O vinho de talha passou das tabernas do Alentejo, onde ainda se bebe, para as mesas mais exigentes. O preço, naturalmente, acompanhou a mudança.
No passado, por alturas do S. Martinho, os amantes do vinho estavam ansiosos por provar o novo néctar, pois já estavam fartos de beber vinhos com defeitos após um longo verão. Atualmente, já podemos beber vinho durante todo o ano, sem que o mesmo azede ou fique com outros problemas. Mas o nervosismo e a expectativa de beber um belo vinho novo, no início do outono, mantém-se. Portanto, no dia de S. Martinho, vá à adega e prove o vinho.