Diário do Alentejo

Abençoado regresso aos vinhos “tradicionais” alentejanos

09 de dezembro 2021 - 12:30

Texto Manuel Baiôa

 

O Alentejo é reconhecido pelos consumidores como uma terra de tintos intensos na cor, no aroma e no sabor. Mas nem sempre foi assim. Num passado relativamente recente os tintos alentejanos apresentavam-se abertos na cor, eram frescos e elegantes, e tinham um grau alcoólico contido. Alguns produtores alentejanos iniciaram recentemente um novo caminho, procurando resgatar a identidade perdida de um determinado estilo de vinho alentejano. Entre eles, destacamos hoje dois produtores de Vidigueira: a Herdade Aldeia de Cima e o Natus Vini.

 

Quando o vinho alentejano entrou na era moderna, a partir dos finais dos anos 80 do século passado, a procura do seu vinho cresceu imenso. As plantações de novas vinhas dispararam, ajudadas pelos fundos comunitários que começaram a chegar nesse período. As novas vinhas do Alentejo começaram a instalar-se em locais onde nem sempre tinham existido, plantadas com alinhamento e condução modernos, com rega gota a gota, com talhões diferenciados para cada casta e sem consociação com outras culturas. Reduziu-se o número de variedades plantadas, pois selecionaram-se as castas e os clones que naquele momento pareciam dar melhores garantias de sucesso: boa produção, aromas e sabores intensos e um grau alcoólico elevado.

 

As antigas vinhas em taça, não aramadas, foram desaparecendo progressivamente, pois a sua produção era muito baixa. Estas vinhas não eram alinhadas, nem regadas e não tinham clones selecionados. As videiras eram plantadas ao lado de outras culturas, em locais não muito férteis, mas com um nível freático capaz de alimentar a videira durante o verão. As vinhas tinham uma enorme diversidade de castas, o que aportava características díspares de aroma, sabor, estrutura e acidez que ajudavam a compor o lote final do vinho.

 

No final do século XX houve grandes mudanças nas vinhas, nas adegas e nas estratégias comerciais. Os melhores lotes dos vinhos alentejanos foram encaminhados para um tipo de vinho que estava na moda e que vendia bem: vinhos com uma forte extração, álcool elevado e forte presença de madeira. Passados todos estes anos, será este o momento de regressar a um estilo e identidade que marcou os vinhos alentejanos durante décadas, valorizando assim a história da região?

 

Alguns produtores acreditam que chegou o momento de retomar algumas práticas antigas na vinha e na adega, apostando ao mesmo tempo nas castas regionais, adaptadas ao ecossistema do Alentejo.

 

HERDADE ALDEIA DE CIMA

Luísa Amorim e Francisco Rêgo têm vindo a desenvolver nos últimos anos o projeto da Herdade Aldeia de Cima, na Serra do Mendro. Plantaram inicialmente quatro vinhas, edificaram uma adega e lançaram alguns vinhos que refletem a biodiversidade singular desta região. Como as suas vinhas ainda são muito jovens, têm comprado algumas uvas na região que vão ao encontro da sua “filosofia”.

 

Em 2019 surgiu a oportunidade de comprarem duas vinhas velhas contíguas à propriedade. As duas pequenas courelas (1,5 ha) situam-se no sopé da Serra do Mendro. São vinhas de sequeiro em taça, não aramadas, com cerca de 50 anos, das castas Alfrocheiro, Tinta Grossa e Trincadeira. “Aqui quisemos criar um vinho com uma identidade muito particular – o Myndru”, refere Luísa Amorim. “Nestas courelas da Cevadeira, protegidas pelas sombras das encostas do sopé da Serra Mendro, as castas antigas de película fina promovem uma cor muito bonita, translúcida, e taninos suaves e redondos e, por isso, consideramos que estas uvas teriam que seguir um caminho como antigamente no Alentejo, sem intervenção humana, sem madeira e mais natural”.

 

Na procura de um vinho ancestral, as uvas das castas antigas Alfrocheiro (70 por cento) e Tinta Grossa (15 por cento) estagiaram 12 meses em pequenas ânforas de barro, “tinajas” espanholas de 150 litros, e em ânforas de ‘cocciopesto’ (gesso) de 1000 litros. Juntou-se ainda 15 por cento da casta Baga, que aporta frescura ao lote. Este vinho remete-nos para as texturas sedosas e elegantes dos vinhos de outrora do Alentejo.

 

NATUS VINI

Por sua vez, Hamilton Reis tem uma longa história à frente da enologia de grandes casas no Alentejo. Chegou agora o momento de mostrar outra faceta do seu trabalho: o Natus Vini - o seu projeto pessoal e familiar. Após um longo período à procura da parcela ideal comprou um terreno entre Vidigueira e Vila de Frades, plantou uma vinha e construiu nessa parcela a sua casa e a sua adega.

 

Na vinha segue técnicas antigas que preservam a essência do lugar, dentro do modo de produção orgânico e biológico. Ao nível das castas tintas plantou essencialmente Trincadeira, uma casta que na sua opinião pode voltar a brilhar. Ao nível do coberto vegetal privilegiou o espontâneo, embora tenha introduzido uma sementeira de ervilhaca e tremocilha para aumentar o teor de matéria orgânica do solo, pois a sua “filosofia” é “trabalhar com a natureza, não contra ela”, uma vez que o “solo é a riqueza de uma vinha”.

 

Após um logo estudo da viticultura alentejana decidiu instalar “as videiras com um compasso de dois por dois metros” conduzidas no estilo tradicional, não aramadas em vaso alto, procurando que a sua estrutura tridimensional proteja os cachos de uva do calor excessivo, evitando a perda de acidez. Na adega também procura seguir técnicas respeitadoras do local, embora com algumas ‘nuances’. Uma vez que a sua vinha ainda é bastante jovem, comprou uvas numa parcela contígua e vindimou mais cedo, pois procura elaborar vinhos mais frescos e abertos. As uvas tintas entraram na adega e foram pisadas a pé. Após uma maceração pré-fermentativa de um a dois dias, o mosto foi prensado. A fração líquida fermentou em talhas tradicionais sem revestimento durante oito a 10 dias. Quando acabou a fermentação o vinho foi transferido para barricas usadas de carvalho francês e português e de castanho português, onde estagiou durante um ano. Esta técnica aproxima-se nalguns aspetos da vinificação romana, uma vez que eles usavam a pisa em lagares (‘calcatorium’), e as talhas (‘dolia’) serviam essencialmente para a fermentação, estágio e armazenamento dos vinhos, já sem as massas. O Natus 2020 transporta-nos para um Alentejo antigo, bem diferente daquele que teve êxito nas últimas décadas, pois a sua cor aberta e o corpo leve transmite-nos frescura e vivacidade.

 

Em suma, estes vinhos são a prova que o Alentejo é a região vitivinícola portuguesa mais multifacetada, ao nível dos solos, das castas e dos estilos de vinhos. Neste caso temos dois vinhos que seguem um estilo antigo quase esquecido, mas que faz sucesso a nível internacional em regiões como a Borgonha.

 

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