Diário do Alentejo

FITA: “Se Isto é um Homem” no Pax Julia

03 de maio 2021 - 12:25

Texto Rita Palma Nascimento

 

A Companhia de Teatro de Almada marcará presença na oitava edição do FITA com a peça “Se isto é um Homem”. O espetáculo retrata, na primeira pessoa, “a humilhação do homem pelo homem” e o sofrimento vivido no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. A narrativa, um original de Primo Levi, no livro homónimo de 1947, é composta por “estilhaços de memória” de um sobrevivente. Com encenação de Rogério de Carvalho e interpretação de Cláudio da Silva, subirá ao palco do Pax Júlia no próximo dia 3 de maio, pelas 20:00 horas.

 

“O narrador deste texto — o próprio Levi, interpretado por Cláudio da Silva - vem falar-nos da sobrevivência a qualquer coisa monstruosa, inqualificável: tudo foi possível, até o impossível. Trata-se de alguém que tem a força e a clarividência de dar o testemunho da sua experiência, de um tempo, da História”, revela o encenador Rogério de Carvalho distinguido em 1980 com o Prémio da Crítica para a melhor encenação com Tio Vânia, de Tchekov, e em 2001 com o Prémio Almada de Teatro, pelo Ministério da Cultura.

 

Esta é a primeira vez que o original de Levi, cuja edição inicialmente recusada deu lugar a uma pequena edição de autor, em 1947, sendo mais tarde, em 1958, dignamente publicado e traduzido para o mundo, é adaptado para teatro em Portugal. A estreia, em 2019, marcou o centenário do nascimento do autor, o que, segundo Cláudio da Silva, dignifica e homenageia “alguém que sobreviveu a um processo de desumanização desenvolvido pelo nazismo, semelhante ao de outros regimes totalitários. É preciso não esquecer isso, numa altura em que assistimos ao crescimento de sistemas e de políticos intolerantes”.

 

Rodrigo Francisco, diretor artístico da Companhia, fala ao “DA” sobre a questão, evidenciando a importância da memória na arte e para a arte: “Existem vários metros de lombadas de livros escritos sobre isso. O que posso dizer é que, sem memória do que está para trás, os artistas ficarão perdidos. Creio que na arte (como na vida) é fundamental ter a noção do percurso daqueles que viveram antes de nós, ou corre-se o risco de cair no logro de achar que descobrimos algo novo — mas que alguém já tinha descoberto 50 anos atrás. As vanguardas não são exclusivas do tempo em que vivemos”.

 

Para Rodrigo Francisco, o teatro é, acima de tudo, e a par da democracia, “uma bela invenção do homem. O teatro tem sido muitas coisas, consoante as épocas e os contextos em que existe, e consoante os atores que o fazem e os espectadores que o veem. O que sei é que o teatro, na cultura ocidental, nasce juntamente com a democracia — são irmãos coevos, o que não me parece que tenha sido por acaso, não podem existir, em pleno, uma sem a outra”.

 

HISTÓRIA DE UMA AVÓ ARGENTINA

 

Escrito, dirigido e interpretado pela argentina Bélen Pasqualini, “Christiane Un Bio-Musical Cientifico” é outro dos destaques da edição deste ano do FITA, com exibição marcado para o próximo dia 5 de maio no Teatro Municipal Pax Júlia.

 

O espetáculo, assume Bélen, é uma homenagem em vida a Christiane Dosne Pasqualini, sua avó, reconhecida investigadora científica na área da leucemia, que chegou a Buenos Aires com 22 anos para trabalhar ao lado do Prémio Nobel Bernardo Houssei e foi a primeira mulher a ingressar na Academia Nacional de Medicina de Buenos Aires. Uma história envolvente, uma ode à paixão, à superação e à conquista de um lugar de destaque entre o universo científico masculino. “Quando tinha sete anos fui convidada, na escola, a escolher uma heroína. Não foi necessário pensar muito”, conta a encenadora. A avó Christiane Dosne de Pasqualini foi, e ainda é, a sua escolha.

 

A rutura com as questões sociais da época, confessa, foi o mote e a principal inspiração para a criação da peça que “surge do desejo de homenagear quem tanto me inspirou e inspira”. O projeto ganhou força em 2013, alguns anos após o lançamento da autobiografia da avó. “No livro, foram intercalados acontecimentos da sua vida pessoal, com a paixão e dedicação ao serviço da investigação e estudo do cancro. O potencial teatral era enorme e comecei a imaginar-me na pele daquela mulher, esposa, mãe e cientista. Estremeci. Tinha que contar a história”, revela.

 

“As mulheres só se fizeram ouvir mais alto no século XX, mas a minha avó [hoje com 101 anos] foi deixando a sua marca profundamente gravada. Embora de caráter forte, continua a ser muito dócil, respeitada e admirada por quem a acompanhou”, mas não se considera uma feminista, nunca assumiu a preocupação de ganhar espaço entre os homens, “ela só tinha o desejo de fazer o que mais amava: investigar. É uma humanista”.

 

Questionada sobre de que forma pode a arte servir a ciência e vice-versa, Bélen não tem dúvidas: “Têm um ponto de convergência, requerem ambos seres curiosos, observadores e desejosos de descobrir alguma coisa no escuro, na incerteza do desconhecido. Acho que fazer ciência e atuar são a mesma coisa. Avançar no incerto, transportando em si uma vocação profunda e o desejo de chegar à verdade”.

 

Ao longo de quatro anos, o espetáculo conta com 230 exibições na Argentina e noutros países, “tanto em ambientes artísticos como em campos científicos, desde congressos a fóruns, visto serem ambos lugares de construção. É uma obra pedagógica, no sentido em que tem um lado de divulgação científica”.

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