Diário do Alentejo

Crónica de vinhos: "Uma ode à imperfeição"

09 de outubro 2020 - 12:10

Texto Vanessa Schnitzer

 

O moralista francês François de la Rochefoucaul dizia que “as nossas virtudes não são mais do que vícios disfarçados”. Não haverá contexto onde esta verdade se propague melhor do que no mundo do vinho. Por estranho que a imagem se anuncie, há quem se entregue loucamente ao compromisso da busca da perfeição. Há quem se perca numa perseguição insensata pela procura de paraísos utópicos. Quem se esgote numa demanda irracional pela pureza absoluta, desejando atingir o inatingível, desejando colher o que a natureza não é capaz de produzir. No entanto, é verdade que este propósito da quimera impossível é uma das rodas que faz girar a civilização, o tal combustível que perturba a alma humana. Segundo Eduardo Galeano, quando inquirido sobre a utopia: "serve para que eu não deixe de caminhar".

 

Poderíamos sempre dissertar sobre a ontologia dos arquétipos de Platão, aprimorando a consciência da perfeição numa tentativa de a aproximar da esfera divina. A perfeição poderá ser contextualizada e encarada como princípio para alcançar a excelência de acordo com a realidade do meio, fazer o melhor possível com aquilo que se tem, e não como uma busca sonhadora metafisica impossível de concretizar. A primeira trará resultados certamente muito compensadores, enquanto a segunda só poderá conduzir a uma espécie de esquizofrenia neurótica.

 

No mundo do vinho, a aproximação da perfeição poderá significar o afastamento da sua essência, da natureza do seu ‘terroir’. A riqueza que se vive no vinho reside na diferença, nas muitas peculiaridades e singularidades próprias de cada universo. O conceito de perfeição esconde o princípio normalizador, esmagador dos ângulos e das arestas, aniquilador da energia e do pulsar da vida do vinho que se traduz na sua densidade e profundidade dramática.

 

Um caso paradigmático é evidenciado pela levedura ‘brettanomyces’, ou ‘brett’. Em quantidades elevadas, pode desenvolver no vinho aromas desagradáveis a couro, estrebaria, suor de cavalo, sendo por isso considerado um defeito. Paralelamente, alguns dos vinhos mais icónicos do mundo, com uma certa longevidade, estão contaminados com esta levedura. Esta capacidade de tornar um defeito numa oportunidade, e convertê-lo numa imagem de marca não está acessível a todos; somente para aqueles que não andam à boleia das modas, e não encaram o vinho como um simples produto, mais ou menos trabalho de adega, para agradar ao mercado. O defeito surge assim como um carácter distintivo, e um fator de inovação. Os problemas que decorrem do natural processo de vinificação transformam-se em vinhos condenados ao sucesso. Tornando-se em produtos únicos, diferentes. E, num mundo dominado pela padronização, ser diferente acaba por ser oportunamente proveitoso.

 

Foi precisamente este caminho que trilharam os enólogos da Herdade do Arrepiado Velho, em Sousel, no Alentejo, quando encontraram a levedura numa das barricas de Syrah que se destinava ao vinho Arrepiado. Perante o grande risco de contaminar o lote, optaram por arriscar e encarar o problema como uma grande oportunidade. E daí nasce o especial “Brett Edition”. Um vinho muito interessante, cheio de tensão e de rasgo, mas que nunca perde a elegância e a frescura.

 

Que estas imperfeições inspirem as próximas, a fim de assegurar a essência e a verdade nos diferentes vinhos. Não existe nada pior que um vinho mascarado de falsas virtudes, “polidinho”, sem defeitos e destemperado. Imaginem o que seria das nossas vidas sem os chamados vinhos imperfeitos? Ficaríamos reduzidos a um ranço antipático, entediante e monocórdico dos vinhos perfeitos.

 

Um hino à imperfeição que é o único veículo capaz de abrir as portas da nossa perceção sensorial!

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