Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: "O País engarrafado"

22 de julho 2020 - 16:10

Esta semana dei comigo a refletir de que raramente valorizamos as extraordinárias qualidades do povo português. A sociedade portuguesa complexada desejava apenas ser Europa, macaqueando-lhe virtudes, em tudo exagerando no relativismo, desprezando o nosso passado histórico e cultural. Basta, por exemplo, observar o conteúdo curricular dos nossos cursos de história, quase na sua totalidade dedicado à cultura europeia. Carregamos assim um complexo de inferioridade muito grande quando nos evitamos e desdenhamos os produtos nacionais, só valorizando aquilo que vem de fora.

 

No entanto, existem exceções, em que colocamos esses pruridos de parte. Uma delas é quando se trata dos vinhos nacionais, em que a nossa supremacia e superioridade são sustentadas de forma genuinamente descomplexada e inesperadamente afirmativas. O vinho surge como um verdadeiro rasgão de luz, numa sociedade descrente nos seus valores.

 

O vinho português possui assim uma vitalidade sagrada que o distingue do “desconsolado néctar” (segundo Eça de Queiroz) das terras do Médoc,  participando de uma identidade portuguesa, a sua proximidade da natureza, a sua força vital.

 

Elemento identitário essencial, é um sinal indicador das raízes profundas que um individuo ou uma família possuem na terra portuguesa. O vinho português de velha casta é um marcador da legitimidade social, como os quadros e móveis antigos, participando de um ritual secular que nos vem das nossas origens latinas, e da implantação, com os pés de vinha, de uma civilização ligada justamente a uma “arte de bem viver”.

 

Cada vinho conta a história de um povo, de uma região. Não é possível dissociar a história do Pais da história do vinho. “Beber vinho é saborear uma gota do rio da história humana” (segundo Paul Fadiman).

 

Não é possível conhecer verdadeiramente uma região sem se “provar” a sua geografia. Só é possível captar a verdadeira essência de um lugar através do sangue que nasce da terra que lhe dá vida. Cada garrafa, um sopro de vida; cada gole, um mergulho nos vales e encostas, nas planícies ondulantes, no céu feito de um azul imaculado que se perde no horizonte infinito.

 

“O vinho conta uma história a partir da videira que lhe dá vida”. Para além de aumentar a nossa cultura, amplifica o prazer, que não se esgota no universo dos sentidos.

 

Como defendia Eduardo Galeano, “o ser humano não é feito de átomos, é feito de histórias”. As histórias fazem com que a produção de vinho não seja apenas um negócio, mas uma atividade que reúne um conjunto de histórias, segredos, saberes, desejos, aspirações, emoções de todos os elementos que participaram na sua elaboração. E toda esta riqueza passa para os nossos copos e alimenta novas histórias.

 

No outro dia, entrei na reputada garrafeira Astória de Parede, Cascais, e fui agraciada com a verdadeira história do mítico e afamado, o mais precioso do Mouchão, o Tonel 3/4. Embebida em tanta curiosidade, apeteceu-me logo adquirir uns quantos exemplares deste misterioso alentejano. Quem diria, que seria na Parede que iria “desengarrafar” esta incrível estória de uma das quintas mais icónicas do Alentejo.

 

O vinho tem destas coisas…

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