Na planura abrasadora da margem esquerda do Guadiana, onde o sol cai a prumo e o verão parece não ter fim, sobrevivem algumas das vinhas mais singulares do Alentejo. Amareleja, terra reputada como “a mais quente de Portugal”, guarda ainda um património raro: vinhas velhas de sequeiro, muitas delas plantadas em pé-franco, em solos onde a filoxera nunca conseguiu prosperar. Estes velhos talhões, alguns com mais de 40 anos, mas já perfeitamente enraizados na tradição antiga de condução das cepas, estão destinados para a elaboração de vinhos de talha e são a base identitária do trabalho do enólogo José Piteira. Contudo, ele também processa milhões de quilos de uva na Cooperativa Agrícola de Granja-Amareleja destinados a vários estilos de vinhos.
Texto | Manuel BaiôaFotos | Ricardo Zambujo
As vinhas velhas da Amareleja Na Amareleja surgem várias courelas que são o ex-libris da região, famosas pelo equilíbrio improvável entre secura extrema e vigor das cepas. Quem chega no pico do verão a estas parcelas surpreende-se sempre com o viço das cepas e a carga dos cachos, como se fossem indiferentes à seca e às vagas de calor. Um dos segredos é o solão, uma camada argilo-arenosa amarelada, enterrada sob a superfície arenosa e cascalhenta das vinhas. A argila retém a humidade que alimenta as raízes durante o estio, enquanto a areia superficial impede o avanço da filoxera. É esta combinação que permite que cepas de Moreto, Pendura da Amareleja (Diagalves) ou Roupeiro resistam à violência climática e mantenham uma regularidade qualitativa difícil de igualar.“Estas vinhas são uma imagem de marca da Amareleja”, afirma João Piteira. “Foram plantadas com varas de outras vinhas da zona, muito adaptadas ao clima e ao solo. Temos de pagar melhor estas uvas se quisermos preservar este património. Caso contrário, arrancam-se”. A advertência não é retórica: as vinhas velhas são trabalhosas, pouco produtivas e incompatíveis com incentivos comunitários. Mas são elas que proporcionam os vinhos mais autênticos, verdadeiros museus vivos de diversidade ampelográfica.Muitos destes vinhedos não regados e não aramados estão plantados em pé franco, isto é, vinha sem enxerto em porta-enxertos de videiras americanas – método utilizado desde o final do século XIX para evitar o ataque da filoxera. Contudo, “aqui, nestes solos, a filoxera atacou menos” devido ao tipo de solos. “Isto são terrenos de cascalho, de muita areia, que indicam que o rio Guadiana tem andado a vaguear aqui nesta região, neste cascalho rolado, e isto dificulta a ação da filoxera, e por esse motivo sempre conseguimos manter aqui algumas vinhas em pé franco, que, de facto, dão vinhos diferentes, com outro volume, com outra suavidade, e, pronto, são um bocado a imagem de marca aqui da Amareleja”, conclui José Piteira. Os agricultores usavam retanchas, isto é, retiravam varas das suas melhores cepas e das dos seus vizinhos e plantavam-nas. Este método permite manter uma grande biodiversidade de castas e clones antigos da região adaptados ao seu clima e solo.A condução e o espaçamento da vinha também são muito tradicionais. A vinha é podada no sentido de formar em cada parreira uma espécie de taça, com o objetivo de “proteger um pouco contra o calor. Há outro sombreamento nos cachos e isso também é importante”. Em relação ao espaçamento, as videiras são implantadas com uma distância de dois por dois”, em quadrado. São vinhas mais trabalhosas, não permitindo a mecanização da mesma forma das vinhas modernas, embora se possa passar de forma cruzada. Neste aspeto, José Piteira segue a linha tradicional, a dos antigos com quem aprendeu, e que vai contra a tendência atual: “Hoje em dia cada vez mais a indicação é de não mobilização dos solos. Faz algum sentido. No entanto, aqui nesta região sempre foi utilizada alguma mobilização de solo no final de primavera, desde logo para destruir infestantes, mas também para manter ali uma camada de solo mais esmiuçado, mais desfeito, que acaba por ser um tampão e que conserva a humidade nos solos”.Paradoxalmente, foi a crise económica na cooperativa local, que durante anos não pagou as uvas, que acabou por salvar muitos destes vinhedos. No final dos anos 90 e no início do novo milénio o sucesso do vinho alentejano levou a uma grande restruturação das vinhas em muitas sub-regiões: “Enquanto noutras zonas arrancavam vinhas velhas para plantar clones produtivos, aqui ninguém plantava, não havia dinheiro. E assim o património ficou”, explica o enólogo. O destino fez o seu papel. Hoje, a valorização dos vinhos de talha devolveu sentido económico a este método ancestral de cultivar a terra.
A casta Moreto Se as vinhas velhas são a alma da Amareleja, a casta Moreto é o seu coração. A Moreto teve quase seguramente como progenitores a Cayetana Blanca e o Brunhal, duas das castas mais antigas da Península Ibérica. Rústica, tardia, de película espessa e surpreendente resistência ao escaldão, é nela que se concentra a identidade do vinho tinto da sub-região Granja-Amareleja. A sua reputação oscila: é venerada na margem esquerda e desdenhada noutros pontos do Alentejo e de Portugal. Sendo uma “casta tardia, em climas mais frescos não tem cor e não tem grau suficientes. Por isso é que tem vindo a ser muito substituída”. Na Amareleja o calor constante no verão e o seu solo aparentemente pobre, mas apto à videira, permitem que amadureça e dê cachos de qualidade. Em relação à rega, José Piteira é mais cético: “Na rega é onde eu acho que tem que se ter muito cuidado. Pois a Moreto não requer muita água, se não vêm dificuldades de maturação no fim do ciclo”.As características agronómicas da casta são decisivas num território tão quente. A Moreto encara de frente as ondas de 40 graus, mantendo a integridade fenólica. “Nunca vi cachos de Moreto escaldados”. A película espessa, quase amarga, protege a polpa; os taninos são firmes, mas suaves, quando colhidos entre os 13 e 14 graus – “o ideal”, segundo Piteira. A casta só se expressa totalmente neste extremo geográfico. Demasiada água prejudica a maturação; demasiada sombra reduz o carácter. Por isso a poda em taça permanece indispensável nas vinhas tradicionais: oferece sombra moderada, frescura mínima e proteção contra o sol direto.A Moreto é uma casta de futuro, não de passado. O seu ciclo longo e a resiliência ao calor tornam-na especialmente adaptada às alterações climáticas. Na Amareleja, o perfil do vinho tinto de talha baseado em Moreto é claro: cor rubi pouco intensa, aroma identitário, rusticidade elegante, tanino dócil, frescura surpreendente. São vinhos que se bebem jovens, mas que ganham profundidade com o tempo de garrafa – algo que Piteira sublinha com convicção: “Quebrámos o mito de que o vinho de talha não envelhece. Temos brancos de 2002 ainda excelentes.”A preservação desta casta está intrinsecamente ligada ao seu uso nas vinhas velhas e à cultura da talha. Nas palavras de Piteira: “O vinho de talha precisa da Moreto e a Moreto precisa da talha. Fazem-se companhia há milhares de anos”.
A vinificação tradicional dos vinhos de talha na Amareleja Entrar na adega de José Piteira é entrar num tempo suspenso. Talhas de 1733, 1874 e dos inícios do século XX alinhadas lado a lado; paredes espessas em silêncio; um aroma de barro húmido, fruta macerada e história viva. Nesta adega fazem-se vinhos de talha ininterruptamente desde o século XIX, passando o testemunho de geração em geração: “O primeiro vinho que fiz sob a minha responsabilidade, que era só uma talha, já foi há 42 anos”, recorda o enólogo. “Aprendi com o meu avô e com os antigos. O método é o mesmo. Não vem da universidade, vem da cultura dos nossos antepassados”.As uvas chegam à adega e passam pela mesa de ripanço. Aqui os cachos são desengaçados à mão com o auxílio desta mesa constituída por várias ripas de madeira. Os bagos caem e os engaços ficam em cima. Hoje ainda se utiliza para encher duas ou três talhas, para demostrar como era esta técnica antiga. Na Amareleja usa-se o desengaço total, sempre. Há zonas no Alentejo onde, às vezes, se junta algum engaço. “Mas aqui não, aqui é totalmente desengaçado. E tudo tem uma razão para isso acontecer. Desde logo, as nossas variedades. A casta Moreto, saberemos, tem alguma dificuldade de maturação. Nesta região muito quente ela dá muito boa maturação, mas não deixa de ter alguns taninos, alguns vegetais no engaço” que não interessam ao perfil final. “No branco acontece o mesmo com a Pendura. Retiramos tudo. Só entra polpa, película, grainha e mosto.”A fermentação decorre exclusivamente com leveduras indígenas dentro de talhas entre 700 e 2000 litros e com baixa adição de sulfuroso, pois as uvas chegam geralmente muito sãs. A utilização de leveduras indígenas permite que a temperatura de fermentação esteja mais controlada, facto que também é ajudado por as adegas tradicionais estarem escavadas no chão, tendo os tetos altos. A manta é mergulhada com um rodo, de manhã e à tarde. A fermentação alcoólica dura de oito a 10 dias; a malolática arranca logo a seguir, naturalmente. E à medida que a fermentação vai parando, os potes são atestados para que não haja oxidações prejudiciais.As massas permanecem na talha pelo menos até ao São Martinho, mas José Piteira costuma prolongar até dezembro ou janeiro: “Muitas vezes ainda não fez frio suficiente até 11 de novembro, e gosto que o vinho passe mais tempo em contacto com as mães”.O momento mais simbólico do processo é o da abertura da talha. Em vez de torneira, Piteira mantém uma tradição que se preserva na Amareleja: a cana recheada de junça (planta silvestre que se apanha junto aos ribeiros). “É o nosso filtro de acabamento”, diz. A junça entra dentro do pote, expande-se e cria logo ali um canal de drenagem pelos canais da seiva e filtra suavemente o vinho, permitindo um escoamento límpido, quase esterilizado. O professor Virgílio Loureiro estudou este método ao microscópio eletrónico e confirmou a sua função.Para fazer um bom vinho de talha há que ter uma disciplina absoluta. “Há vinhos que gostam de ter a gente perto deles todos os dias”. A vigilância constante do nível do mosto, impedindo a manta de subir e oxidar o vinho, é vital. Uma talha demasiado cheia durante a fermentação é convite à oxidação; uma talha mal atestada após a fermentação é convite à acidez volátil. É uma dança fina entre tradição e rigor técnico, mas sempre com uma higiene irrepreensível em todos os processos.Uma das decisões mais importantes do vinho de talha é saber o momento em que deve ser retirado da mãe (das massas). A longa experiência de José Piteira leva-o a intuir pela prova o “momento em que o vinho tirou tudo o que tinha a tirar da mãe, mas ainda não começou a ser prejudicado pela mãe”.A partir de janeiro, o vinho é retirado, massa prensada, lotes acertados e preparados para o engarrafamento. O resultado é um vinho “simples, mas nunca simplista”, refletindo a pureza e o carácter do lugar.
Os vinhos de talha José Piteira Os vinhos de talha de José Piteira são uma referência incontornável da DOC Talha. Produz entre 15 000 e 20 000 litros por ano na sua adega histórica – e milhões de litros na Cooperativa da Granja-Amareleja –, mas é na pequena adega familiar que o espírito ancestral se cumpre em plenitude.O “José Piteira Vinho de Talha Branco 2018” é um exemplo perfeito da longevidade possível neste estilo. Feito com Pendura (Diagalves) e Roupeiro, apresenta cor amarela dourada, aroma ténue, notas melosas, frutos secos, volume e rusticidade. Aos sete anos de vida revela frescura e estrutura, desmentindo o mito do talha efémero.Já o “José Piteira Talha Tinto 2022”, feito exclusivamente de Moreto, mostra cor rubi carregado, notas de fruta madura e notas vegetais frescas, barro molhado, taninos polidos e alguma especiaria. É, simultaneamente, jovem, fresco e profundamente ligado ao território.A mensagem final de José Piteira é simples: o vinho de talha não é apenas um produto, é uma herança. “Temos um produto que provavelmente os imperadores romanos já bebiam igual. E, acima de tudo, não podemos perder este conhecimento. Estivemos perto disso. Mas hoje há esperança”.Os vinhos de talha José Piteira são a prova dessa esperança: genuínos, puros, profundamente ligados à terra que os gera – e cada vez mais procurados por aqueles que reconhecem que, no Alentejo profundo, ainda se faz vinho com autenticidade, tradição e história. Hoje, quando o mundo do vinho procura identidade e origem, Amareleja e os vinhos de talha de José Piteira surgem como um farol. Não apenas pela sua qualidade, mas pelo que representam: a continuidade de um saber quase perdido, a força de castas autóctones adaptadas ao clima extremo e a prova de que tradição e futuro podem coexistir no mesmo gole. Assim, mais do que vinhos, José Piteira oferece legado – um legado que honra a história e aponta um caminho para o amanhã, onde a talha continuará a falar no idioma ancestral da terra, do barro e do tempo.
