Dados do “Inventário de Grupos Corais em Atividade 2024”, da responsabilidade do Museu do Cante Alentejano, apresentado recentemente na Casa do Alentejo, em Lisboa, mostram que esta forma de expressão “é, provavelmente, ainda, a atividade que mais mobiliza os alentejanos nos dias de hoje”.
Texto | Nélia PedrosaFoto | Ricardo Zambujo
O mais recente “Inventário de Grupos Corais em Atividade” realizado pelo Museu do Cante Alentejano, sediado em Serpa, indica que em 2024 existiam 3105 cantadores – 2079 masculinos e 1026 femininos – correspondendo a 164 grupos. A maioria – 85 grupos (51,8 por cento) – era do distrito de Beja (1604 elementos), seguindo-se Évora (27 grupos, 488 elementos), Setúbal (26/480) e Lisboa (15/310). Na listagem figuram, ainda, os distritos de Faro (quatro/82), Portalegre (três/65), Porto (dois/50), Braga (um/15) e Santarém (um/11).
Para o coordenador do museu, estes dados revelam que “continua a haver um grupo muito grande de gente a cantar”, que o cante “continua muito ligado à vida das pessoas” e “é, provavelmente, ainda, a atividade que mais mobiliza os alentejanos, nos dias de hoje, sendo a sua principal forma de expressão”. “Não estou a ver nenhuma atividade, tirando o futebol, mas o futebol não é exclusivamente alentejano, que reúne 3105 pessoas organizadas a cantar. São maioritariamente todos alentejanos ainda, embora, por exemplo, já comece a haver, sobretudo, nos grupos da diáspora, e nos tais excecionais [como no Porto ou Braga], pessoas que não têm ligação [ao Alentejo]. Ou, então, são de segunda geração, mas muito ligada ao Alentejo, ou amigos de amigos”.
Para João Matias, é de salientar que dos 164 grupos em atividade, à quinta-feira “ensaiam 44” e à sexta-feira “33”, o que, “multiplicando”, tendo em conta uma média de 20 elementos por grupo, “dá 800 alentejanos a cantar à quinta e seiscentos e tal à sexta”. “É engraçado, esta gente junta-se ali, ao fim de um dia de trabalho, para cantar. Isto é um dado positivo, é gratificante. Se pensarmos que as pessoas saem de casa para se juntarem e irem cantar quer dizer que o cante tem uma força mobilizadora”.
E ainda que, comparativamente a 2020, data do último inventário, se assista a uma diminuição do número de grupos e elementos (-25 e -565, respetivamente), o responsável sublinha que essa não é principal preocupação do museu, porque o cante não se esgota nos grupos corais – que, para o inventário, foram selecionados de acordo com os critérios constantes no dossiê elaborado aquando da candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco, aprovada a 27 de novembro de 2014, nomeadamente, o cante alentejano entendido como um género polifónico tradicional, não acompanhado por instrumentos, refletindo a incorporação de um vasto reportório da poesia tradicional (modas) em melodias existentes ou recém-criadas (estilos), com uma atividade regular e um número mínimo de elementos.
“O primeiro dado que salta à vista é, de facto, a questão do decréscimo, mas esse é um elemento entre muitos outros. Haver menos grupos não quer dizer que haja menos pessoas a cantar. O que nos interessa é a prática. Os grupos corais são muitíssimo importantes, mas o cante não é só isto, porque há lugares onde não há grupos corais e as pessoas cantam, até se movimentam de um lado para o outro. Por exemplo, quando desaparece um grupo numa freguesia, os que querem continuar a cantar dessa maneira vão para outros grupos”. E reforça: “O cante não está em perigo”. Para além disso, comparativamente ao inventário de 2020, saíram 45 grupos, mas entraram 20, “muitos deles de jovens”, o que também se deve ao “efeito Unesco”. João Matias diz que o cante tem “esta particularidade, por um lado, estando o Alentejo a perder população, os grupos corais também perdem, mas, por outro, há jovens que retomam”. O cante, “ao ter uma revalorização, é hoje, outra vez, uma prática que atrai os jovens”, afirma.
Para a atualização do inventário, coordenado por Paulo Nascimento, e que contou também com o contributo de João Matias, foram aplicados, entre maio e outubro de 2024, 193 questionários, através de entrevista, e estabelecidos 40 contactos institucionais. João Matias justifica a criação, em 2020, e a atualização, em 2024, do inventário, como “parte da missão” do Museu do Cante Alentejano “enquanto entidade representativa do cante perante a Unesco”. “Estabeleceu-se um compromisso com a Unesco. Que é a criação e execução de um plano de salvaguarda. Uma série de medidas que se devem tomar para que o cante alentejano, este bem que é patrimonializado, permaneça e se observe. E para fazermos isso temos que saber o que é que se passa. Faz parte do nosso compromisso ir elaborando relatórios de tempos a tempos [para a Unesco]. Também participamos em fóruns internacionais onde estão patrimónios imateriais de outros países, que têm semelhanças com o cante, e onde se levantam algumas questões”.
Cante “está a ir para além do seu contexto habitual” Dos dados do inventário de 2024 trabalhados até ao momento, e que foram apresentados recentemente na Casa do Alentejo, em Lisboa, João Matias destaca, ainda, o surgimento de novos grupos corais “no coração de Lisboa, em Benfica, em Alcântara”, “com alentejanos”, ou os ditos “excecionais”, no Porto ou Braga (neste último caso, uma novidade comparativamente ao inventário de 2020), o que mostra que o cante “está a ir para além do seu contexto habitual”, “a expandir-se, o que é normal”, tendo em conta a sua inscrição na Unesco. Mas ao “tornar-se conhecido, ao expor-se, por um lado ganha novos entusiastas, ganha um público muito grande, mas também absorve tudo o que vem de fora”, nomeadamente, “experiências que têm com outros géneros musicais”. É “um sinal dos tempos”, considera o coordenador, frisando que “é quem canta, quem pratica, que escolhe o caminho”, e “uns podem ir para um lado, outros para outro, porque este universo, apesar de ter uma matriz comum, muito forte, não é todo igual”. Mas a verdade é que “há uma consciencialização muito grande dos cantadores sobre o que se está a passar”, “discutem as questões”. Preocupante seria, alerta, “se estivessem desatentos, se fossem instrumentalizados ou manipulados”. “Todos esses fenómenos são discutidos pelos próprios, mas isso é sinal de vitalidade. As pessoas não encolhem os ombros. Por exemplo, se aparece um projeto novo… Temos tido imensas propostas no campo de fusão de géneros artísticos. Há grupos que são ultratradicionalistas, não querem nada disso. Há outros que sim. Quem sabe disso é quem pratica. Nós apenas observamos”.
Outros resultados “interessantes” prendem-se com as atividades organizadas pelos grupos. Pelas respostas dadas conclui-se que continuam a “ter um papel muito importante no resgate de algumas tradições que já estavam em desuso, portanto, revitalizam uma parte da memória coletiva através do cante”, designadamente, do cante ao Menino, Janeiras e Reis, para “além da vertente solidária”, com deslocações “a centros de dia ou lares, por exemplo”.
O inventário de 2024 teve ainda em conta os efeitos da pandemia de covid-19 na atividade dos grupos corais, sendo que 95 grupos estiveram sem atividade “entre um e dois anos” e 26 (15,8 por cento) “nos confinamentos”. Noventa grupos (54,9%) responderam que a paragem “teve impacto” na sua atividade e 51 (31,1%) responderam que “não teve impacto”. Dos que responderam afirmativamente, 39 (43,3%) apontaram como impacto negativo a “perda de elementos” e 22 (24,5%) a “desmotivação”. “À partida, parece estranho que só 50 por cento diga que a pandemia teve impacto, mas se tivéssemos colocado esta questão no auge da pandemia, se calhar tínhamos 100 por cento”, diz João Matias. Parte destes dados irão ser disponibilizados no novo site do Museu do Cante, cuja data de lançamento ainda não é possível avançar. “O nosso objetivo é torná-los públicos para quem quiser, eventualmente, aprofundar [o seu estudo]. Só assim faz sentido. Já havia muitos investigadores a estudarem o cante, mas agora acontece com mais frequência”, devido “à patrimonialização”, conclui o responsável.