Diário do Alentejo

25 de Abril, ainda a esperança
Opinião

25 de Abril, ainda a esperança

Aurora Rodrigues, magistrada

30 de abril 2020 - 16:00

Neste ano de 2020, o 25 de Abril é diferente do que nos habituámos a comemorar desde 1974, mas o seu significado tem de permanecer.

Essa diferença talvez nos desperte para o que podia ter sido um Abril mais inteiro e limpo do que foi ou se tornou.

Um Abril mais justo e mais igual, onde todos tivessem casa, onde todos tivessem pão e igual acesso à educação. Foi o que sonhámos. Que este Abril confinado ao menos nos mostre que confinamento e isolamento social não podem, em caso algum, ser sinónimos de segregação e exclusão, nem abandono dos mais velhos e dos mais pobres.

É isso que mais me preocupa, a desigualdade e o aproveitamento de uma crise como a atual e a que está iminente, por parte de alguns, para subverter a democracia que Abril nos trouxe, negar os direitos humanos fundamentais de minorias sociais e económicas e alimentar discursos e atitudes de ódio, muitas vezes subtis.

Do mesmo modo me preocupa a segurança, saúde e até a vida de mulheres e crianças, em famílias que incluem um ou mais agressores, em situação de confinamento doméstico. Os gritos podem ser abafados se a solidariedade de quem está perto não tomar forma, e as mortes e sofrimento podem ser causados, sem resposta nem socorro.

No entanto, o confinamento de hoje, em abril de 2020, para quem tem condições de optar por ele e não vive alojado em guetos cercados, ou, quanto às mulheres e crianças, encerradas em casa pelos agressores, pode ser um gesto solidário, de proteção dos outros, que não apenas de si próprio, contra o contágio e é esse, acredito, o valor que tem para aqueles que o aceitam.

Este confinamento, que vivo em democracia, traz-me à memória o confinamento a que me submeteram a partir do mês de maio de há 47 anos e a importância que têm as pequenas coisas quando resistimos.

É que tudo ganha outra escala e fica a memória do que se ouve e vê a partir do local de confinamento, muito semelhante aos ruídos que hoje se ouvem de fora e às imagens que se veem ao longe, a que antes nunca se tinha prestado atenção. 

Em maio de 1973, eu era uma jovem alentejana de 21 anos, estudante de Direito em Lisboa, para onde tinha ido com 17 anos depois de dois anos no Liceu de Beja e, naquele mês, fui presa e entregue à PIDE.

Em isolamento, passei a ter sons e imagens unicamente a partir de celas do Forte de Caxias.

Privada de todos os contactos físicos, as visitas que tive, quando estava no reduto norte do Forte eram feitas com um vidro a separar-nos a toda a largura e altura do cubículo onde as visitas decorriam, com dois pides a assistir.

No reduto sul, onde ficavam as celas de tortura, tocavam-me os pides quando me batiam, me empurravam e me asfixiavam.

As memórias que trago aqui acompanham-me, ficaram mais vivas agora e dão sentido ao presente e marcam bem a diferença que, apesar de todas as incompletudes, há entre ditadura e democracia que o 25 de Abril de 1974 separa. 

Naquela altura, lá, ouvia abrir e fechar as portas. Ouvia também gritos, vindos de um bairro próximo, das mães a chamarem as crianças.  

Também ouvi música ao longe, vinda de outras celas no andar de baixo, porque nem todos os presos estavam em isolamento e alguns teriam gira-discos ou gravações de música. Lembro-me de ouvir o Hino à Alegria e também cânticos italianos. 

Da cela do reduto sul do Forte de Caxias, onde fui torturada, via o farol ao pé da curva do Mónaco e, do outro lado do rio, na margem sul do Tejo, via uns depósitos metálicos, que ainda hoje lá estão. 

Quando Almada passou a cidade, no dia 21 de junho de 1973, estava em tortura do sono e vi, através das grades o fogo-de-artifício sobre o rio.

No dia 16 de maio vieram e levaram-me num carro celular fechado para o reduto sul, só para me avisarem de que me iam buscar na semana a seguir. Fizeram isso sempre, anunciavam previamente o que iam fazer e é aí que está o medo, que era o grande instrumento da ditadura e da sua polícia repressiva, que era a PIDE. 

Disseram-me que me iam buscar na semana seguinte, foi a primeira vez que entrei na cela de tortura. A seguir levaram-me outra vez para o reduto norte. 

Deixaram-me outra vez no reduto norte, sem ninguém me dizer nada, à espera. Esta ida terá demorado meia hora no máximo. 

Na semana seguinte, ao fim da tarde do dia 23 de maio, como tinham anunciado, vieram buscar-me, outra vez numa carrinha fechada e levaram-me para a cela de tortura no reduto sul. Subi uma escadaria que me pareceu imponente. 

Meteram-me numa cela, onde estava o inspetor do meu processo, Américo da Silva Carvalho.

Apontando as grades duma janela, que me pareceram grossíssimas, disse-me: Estás a ver aquelas grades? Por ali não passas, a não ser feita em puré. Por esta porta não passas, que nós não deixamos. Portanto, é contigo. Tens duas vias, a via da colaboração e a via do sacrifício. Se escolheres a via do sacrifício, levas mais tempo mas o resultado é o mesmo. Saiu porta fora. Eu fiquei e permaneci, sem dormir de dia e de noite, 16 períodos de 24 horas, numa primeira longa sessão.

Eles vinham, entravam, saíam e num dia escarraram-me para cima. Num outro dia, dois pides, na frente um do outro, a uma certa distância, agarravam-me pela cintura e atiravam-me, como se fosse uma bola, de um para o outro, no ar.

Numa fase adiantada da tortura, enchiam de água o lavatório, que estava na casa de banho e metiam-me a cabeça lá dentro e eu ficava a sufocar. 

A tortura ia continuando, eram dias e noites e eu estava ali. Havia uma mesa no meio da cela, que tinha um chão em cimento, formando um padrão parecido com o que forma a corticite. Estava uma cadeira, ou mais, com costas para os pides e um banco sem costas para mim, tive, durante todo o tempo, um banco sem costas, de frente para a cadeira do pide. À entrada, a seguir à porta da cela, do lado direito, havia uma casa de banho, cuja porta nunca se fechava e onde nunca ficava sozinha, sempre com uma mulher pide presente. Do lado esquerdo, havia um compartimento muito pequenino com um divã, mas isso só descobri mais tarde quando me deitaram nele depois de ter perdido os sentidos por me terem espancado, num espancamento programado e contínuo, durante não sei quanto tempo, mas durante muito e de forma sistemática. Depois, a tortura prosseguiu e punham-me “hirudoid” para apagar as marcas.

Quando fui presa, tinha uma canção na cabeça, do José Mário Branco, “Ronda do Soldadinho Um e dois e três, era uma vez um soldadinho”. No meio da tortura, com os pides presentes, cantava para mim: “Um e dois e três, era uma vez, um soldadinho. Um menino lindo que nasceu no roseiral, os senhores da guerra não matam, mandam matar. Os senhores da guerra não morrem, mandam morrer”. Cantava e eles espumavam, mas era como se não estivessem lá. 

Estava dentro de uma cela com eles, incomunicável, só tinha contacto com eles, mas o que dizia e o que pensava eles não controlavam, era livre. 

Tinham-me prendido e torturavam-me o corpo, o resto de mim resistia. Com os pequenos gestos e as pequenas coisas, como o pão com que ia esculpindo pétalas de flores. 

Foi nessa altura que percebi a importância das coisas pequenas, sem importância.

Do mesmo modo que sinto hoje que são importantes as pequenas coisas, os pequenos gestos de resistência.

 

NOTA BIOGRÁFICA:

Nascida em 20 de janeiro de 1952, em Vale da Azinheira, Minas de São Domingos, filha de um anarco-sindicalista, Aurora Rodrigues passou a juventude em Castro Verde, matriculou-se na Faculdade de Direito de Lisboa, em 1969/70, com 17 anos. Abordada pelo PCP, preferiu colaborar com o MRPP, pois considerava este movimento mais abertamente contra a guerra colonial, mas só aderiu formalmente depois de ver de perto o também estudante Ribeiro dos Santos ser assassinado pela PIDE.

 

Foi presa a 3 de maio de 1973, nas traseiras da Faculdade de Letras, após um meeting de estudantes, e levada para Caxias, onde iria ser, do princípio ao fim, mantida em regime de rigoroso isolamento. A PIDE submeteu-a a longos períodos de tortura do sono, acompanhada de espancamentos bastante violentos, para além de toda a espécie de vexames e ameaças, que faziam parte da técnica da PIDE/DGS para coagir os presos a "colaborar". Foi libertada ao fim de três meses, sem acusação, sem ir a julgamento, sem lhe ser permitido contacto com um advogado. É magistrada jubilada do Ministério Público.

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