Diário do Alentejo

O fardo do homem branco
Opinião

O fardo do homem branco

Hugo Lança, doutor em Direito

03 de janeiro 2020 - 00:05

É evidentemente provocatório o recurso estilístico de me apropriar do título do poema de Kipling (escreve o autor com a soberba arrogante que as suas palavras são lidas com interesse bastante para permitir essas ilações), mas há coisas que têm de ser ditas (ainda que, incasu, a palavra seja surda e fique impressa nas linhas jornalísticas).  Mas, perdoem-me os leitores, quem se arroga do desejo de escrever um manifesto tem de fingir erudição. E, sim, é de um manifesto que tratam estas linhas. E, desde já, sugiro que rufem os tambores, que toquem as trombetas, que façam barulho com as gaitas e me joguem no fogo virtual das inquisições do Facebook, mas esta madrugada quero insurgir-me contra a tirania do politicamente correto. 

 

Começa a enojar-me esta sociedade histérica onde qualquer palavra, gesto ou expressão é cobardemente atacada devido a este desígnio nacional do politicamente correto. Onde a ironia, a crítica, o mero desabafo ou a singela brincadeira são razões bastantes para linchamentos populares de acéfalos oficiais com os dedos nas teclas das redes sociais e o cérebro algures em parte incerta. No meu caso, tenho esta terrível fatalidade de ter nascido homem (e, uso a expressão a medo, não apenas porque ter pilinha é crime, como alguém ousar assumir-se sendo do sexo masculino é um intolerável atentado à igualdade de género), aparentemente ser heterossexual (apesar de, sobre o tema, a doutrina dividir-se), caucasiano (o que faz de mim um explorador racial, racista e ainda xenófobo), europeu (o que faz de mim explorador racial, racista, xenófobo e ainda colonialista) e, apesar de agnóstico, sentir simpatia pela Igreja (o que faz de mim explorador racial, racista, xenófobo, colonialista e, provavelmente, pró-pedofilia). Como se não bastasse, raramente uso saias, nem gago sou e nem tenho a verticalidade de caráter de achar que todas as minorias são feitas de criminosos e o seu lugar era na terra deles, mesmo quando a terra deles é esta.

 

É certo que sou mediamente ecologista e tenho esparsas preocupações ambientais, mas, lamentavelmente, a única coisa que deposito no ecoponto são garrafas vazias e jornais consumidos. Apenas me podia salvar o facto de ser alentejano, mas somos tão poucos que nem para ser uma minoria temos número suficiente. 

 

Não me vou dar ao trabalho de criticar o absurdo discurso identitário do “eu contra os outros, e ou estás comigo ou és contra mim” porque não me parece que este seja causa, antes uma consequência. O que me irrita (e escolho o verbo em toda a sua grandeza) ainda mais do que este maniqueísmo dominante que nos divide entre deuses e diabos, é o cinzentismo de uma sociedade contemporânea, na qual todos somos obrigados a uma paleta única (e o que dói a um aristotélico criticar os meios…). 

 

Perceba-se uma coisa: o facto de alguém criticar as saias de um assessor (ou acessor, como se escreve atualmente no acordo ortográfico das redes sociais) não faz dessa pessoa homofóbico nem necessariamente homossexual recalcado; como eu posso criticar a Joacine Moreira sem ser racista ou ter uma opinião sobre as competências retóricas de um deputado sem atacar toda a comunidade das pessoas com deficiência ou ser defensor do eugenismo ou da pureza da raça lusitana (cuja pureza só existe nos cavalos). Como elogiar um discurso do André Ventura não significa aderir ao salazarismo e defender um neofascismo que expurgue os males da pátria. 

 

Repito ad nauseam no meu ensino que as palavras são significado e também são significante, mas desse axioma não podemos inferir que cada palavra é uma faca perfidamente usada para atacar grupos identitários.  Quando a juventude me corria pelas veias, recordo-me do dito popular que ensina que toda esta fobia em atacar os outros são recalcamentos e falta de qualquer coisa. Infelizmente, não me recordo do que é que é mesmo que esta gente do politicamente correto precisa para deixar escrita neste texto a devida prescrição. 

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