Diário do Alentejo

Natal
Opinião

Natal

Luís Godinho, jornalista

24 de dezembro 2019 - 11:05

São 1682 os anos que separam a eleição de Júlio como bispo de Roma da investidura do teólogo, poeta e professor universitário José Tolentino de Mendonça como cardeal, um dos factos marcantes do ano que está a chegar ao fim. Fundador do arquivo da Santa Sé, hoje deixado à guarda do cardeal português, foi Júlio I (mais tarde canonizado) que em 350 d.C., já no final do seu papado, determinou que o Natal passasse a ser comemorado a 25 de dezembro. A celebração da data, ou melhor, do renascimento do Deus Sol no solstício de inverno, era muito anterior, sendo uma das mais importantes festividades pagãs, pelo que a decisão papal teve um duplo objetivo: dar a esse tempo um novo significado (o do nascimento de Jesus de Nazaré) e estimular a reconversão desses povos ao cristianismo.

 

Devemos ao calígrafo Fúrio Dionísio Filócalo, de quem pouco se sabe, a primeira referência às comemorações do Natal a 25 de dezembro, surgindo esta data assinalada no “Cronógrafo” de 354, um calendário ilustrado oferecido a um tal Valentino, aristocrata romano que professava a fé cristã. O volume original "esfumou-se" com a passagem dos séculos mas dele foram feitas várias cópias manuscritas, sendo uma das mais importantes a que se encontra na abadia beneditina de São Galo, na Suíça, declarada Património Mundial da Unesco. Temos assim que a celebração do Natal como hoje a entendemos, i.e., a 25 de dezembro e como uma das grandes festividades do calendário católico, existe pelo menos há 1669 anos.

 

O seu significado é que foi mudando ao longo dos tempos tendo-se caído num "labirinto de excesso, euforia e solidão", para citar as palavras de José Tolentino de Mendonça em artigo recente. "Ainda que as mãos se atulhem de embrulhos, sabemo-las no fundo vazias, atadas às suas posições invisíveis, incapazes de dar não o inútil, mas o que seria preciso". Tempo de renascimento, o Natal será das épocas do ano mais propícias para olharmos à nossa volta, assim haja vontade de o fazer, e dar “o que seria preciso” para que realidades como a pobreza desapareçam do nosso quotidiano: 22 por cento da população residente no Alentejo está em risco de pobreza ou de exclusão social, o que corresponde a um agravamento de 0,9 por cento comparativamente com 2018, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística.

 

Numa época em que muitas famílias se lançam nesse “labirinto de excesso” referido por José Tolentino de Mendonça [um estudo revela que os portugueses estimam gastar, em média, 385 euros em compras de Natal], muitas outras famílias não têm sequer condições financeiras para manter a casa aquecida ou fazer face a uma despesa inesperada. A pobreza, mesmo escondida, é uma realidade muito presente na nossa sociedade. Não por acaso, Isaurindo Oliveira, presidente da Cáritas, lembra que os pedidos de ajuda que mais chegam a esta instituição estão relacionados com “o nível do sobre-endividamento e empregabilidade”. Voltando às palavras do cardeal, que este seja um tempo em que as mãos fiquem mais cheias, menos atulhadas de embrulhos.

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