Diário do Alentejo

Coragem
Opinião

Coragem

Luís Godinho, jornalista

08 de julho 2019 - 11:10

A história é contada por Manuel Alegre em Jornada de África e passou-se em 1962 quando o futuro candidato presidencial, que nessa altura estava a cumprir o serviço militar, chega a Nambuangongo, no norte de Angola, integrado na escolta de uma coluna composta por vários veículos que levavam mantimentos para abastecer o armazém de intendência. Ao entrar no quarto do alferes António Arnaut não conseguiu esconder o espanto: na parede estavam penduradas duas fotografias, uma de Fidel Castro e outra do papa João XXIII, por debaixo das quais tinha sido escrita uma frase de León Blum, antigo primeiro-ministro de França: “O socialismo é uma benção de Deus”.

 

Claro que o comandante da unidade já tinha ordenado ao alferes que retirasse a frase e a fotografia de Fidel Castro. O problema é que António Arnaut respondeu que não “poderia tirar um sem trair o outro”, o que levou o comandante a esquecer o assunto, ainda assim não fosse acusado de ter mandado para o lixo uma foto do papa. É difícil imaginar a coragem, física e moral, necessária para pendurar uma fotografia de Fidel Castro num quartel militar em plena ditadura salazarista.

 

Avancemos alguns anos. Quinta-feira, 20 de julho de 1978. Portugal acaba de estabelecer um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para evitar a bancarrota. Com os cofres vazios, o II Governo Constitucional, liderado por Mário Soares, vive em agonia os seus últimos dias. António Arnaut sabe bem que só por poucos dias, talvez horas, continuará a desempenhar funções como ministro dos Assuntos Sociais. É tempo de agir. Na avenida Defensores de Chaves, em Lisboa, na solidão do seu gabinete, decide uma jogada arriscada que marcará de forma indelével o futuro da saúde em Portugal.

 

Contra a opinião dos setores mais conservadores da sociedade portuguesa, sem o apoio de alguns camaradas de partido, claramente mais interessados em manter o poder do que em criar complicações com o parceiro de coligação (o CDS), e enfrentando a poderosa Ordem dos Médicos, assina um despacho no qual determina que todas as pessoas “não abrangidas por quaisquer esquemas de proteção na doença” passam a integrar o Serviço Nacional de Saúde, dispondo gratuitamente de consultas de clínica geral e de especialidades médicas, serviços de enfermagem, internamento hospitalar, assistência medicamentosa e acesso a exames complementares de diagnóstico e tratamentos especializados. Mário Soares e Vítor Constâncio, o então ministro das Finanças, só conhecerão o teor do despacho passados nove dias, quando é publicado em “Diário da República”.

 

“Foi uma decisão monumental. Apanhei-me ministro sem querer, tinha a caneta na mão e escrevi aquele despacho. Os escritores escrevem livros, os ministros escrevem no ‘Diário da República’. Assinei-o e fui para casa”, contou Arnaut. Coragem, portanto. A mesma que hoje em dia é necessária e se exige à classe política para defender de forma intransigente a maior conquista social do 25 de Abril: o Serviço Nacional de Saúde.

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