Diário do Alentejo

Figo
Opinião

Figo

Vitor Encarnação, professor

28 de junho 2019 - 15:40
Era cedo, era ainda mais cedo do que o acordar dos pássaros. Caiada de silêncio e calor, a casa toda dormia. Cuidado com o poço, cuidado com o poço, dizia a minha avó dentro da minha cabeça. Mas era lá que debruçado sobre aquela boca escura estava o figo, era lá que pendido sobre aquele buraco negro estava o meu desejo maduro. Já ontem à tarde lhe corria um fio de mel para dentro de água. Era preciso pois chegar antes dos pássaros.
 
 
Não te chegues ao pé do poço que o gargalo é falso e o fundo é tão fundo. Constava que se tinha lá afogado um homem. Não foi por causa de nenhum figo, foi por já não haver nenhuma doçura dentro dele. Era manhã cedinho, ainda antes do acordar dos pássaros, e quando o corpo foi ao fundo diz-se que se soltaram andorinhas negras do fundo do poço. E diz-se também que desde aí o maior e mais doce figo nascia sempre suspenso sobre o vazio.
 
 
Era este o figo que eu queria. Cuidado com o poço, cuidado com o poço. Por falta de asas, estico o braço e toco no fruto com a ponta dos dedos. Encosto-me ao gargalo, equilibro-me numa só perna, inclino-me mais e o figo agarra-se à minha mão. Uma pedra cai e o estrondo acorda a minha avó e os pássaros. E quando a pedra foi ao fundo soltou-se um grito que não era meu, nem da minha avó, nem dos pássaros.
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