Diário do Alentejo

A nossa “Notre Dame”
Opinião

A nossa “Notre Dame”

Jorge Feio, arqueólogo

17 de junho 2019 - 11:40

Ainda estará na memória de todos o incêndio que transforma em cinzas uma parte importante da cultura europeia, com a destruição de parte da igreja de Notre Dame, de Paris. Coloco aqui de parte todas as alegações religiosas. Não importa se é uma igreja católica ou ortodoxa, se é uma sinagoga, ou uma mesquita, ou um outro qualquer templo de outra religião. Mas colocarei no centro da atenção de todos nós a necessidade da preservação da nossa cultura, da nossa história e daquilo que nós somos enquanto portugueses e alentejanos.

Em 2012 prestei provas para transitar da carreira de bombeiro voluntário para a carreira de oficial bombeiro (ser licenciado não é suficiente para transitar de carreira). Na altura, uma das minhas maiores preocupações consistia em tentar colaborar com os meus conhecimentos técnicos na melhoria da proteção do nosso património do campo da minha atividade (como voluntário) nos bombeiros e na proteção civil. Posso afirmar que nunca consegui “levar o barco a bom porto”. Porquê? Simplesmente porque quando existe estagnação de mentalidades, as cabeças mandantes nunca estão abertas a inovações, porque existem jogos de poder que não têm qualquer cabimento na nossa sociedade e porque quando alguém tem ideias existe sempre outro alguém que não deixa que se concretizem por muito boas que essas ideias sejam.

 

Imaginemos que a tragédia que se abateu sobre a mítica Notre Dame de Paris acontecia em algum monumento do nosso Alentejo. Por exemplo, se esse incêndio tivesse ocorrido na Sé de Beja, ou na Catedral de Évora, ou na igreja Matriz de Alvito, ou na Basílica Real de Castro Verde (entre muitas outras). Como é que seria? Seria terrivelmente catastrófico! Comecemos pelo básico, serão poucos os casos (ou até mesmo nenhuns) em que existem simples extintores à vista em igrejas. Poucos dos nossos monumentos têm bocas de incêndio funcionais perto (sei que existem perto da igreja Matriz de Mértola e do castelo de Alvito).

 

Não sei se alguma vez os comandantes das corporações de bombeiros foram convidados a participar nas vistorias à segurança desses edifícios, ou, sequer ,se essas vistorias são regulares. Até ao momento, nunca vi um plano de fuga nas várias igrejas que tenho visitado. Também desconheço se o nosso património consta nas cartas de risco, e se conta, em que moldes. E será que as cartas de risco dos municípios estão atualizadas?

 

Já alguém pensou nas consequências que um sismo de magnitude superior a 7.6 na escala de Richter pode ter no nosso património histórico, sobretudo nos edifícios que são mais frequentados (como, por exemplo, as igrejas onde se celebra a eucaristia)? Acredito que não! Quando temos o exemplo da igreja Matriz de Alvito, onde várias centenas de azulejos do século XVII se estão a descolar das paredes um pouco por todo o edifício, e há mais de dois anos somos informados por quem tem a responsabilidade que as obras estão para começar a qualquer momento e nada acontece, bem podemos esperar o pior. E o pior pode ser simplesmente um azulejo cair em cima da cabeça de uma pessoa matando-a... E, já agora, expliquem-me lá por que motivo a candidatura para obtenção de financiamento para a obra de conservação e restauro destes azulejos foi feita fora-de-horas!!!

 

Crendo não me encontrar enganado no ano, em 1996 houve um grave incêndio na Câmara Municipal de Lisboa. Os estragos foram enormes, quer os provocados pelo incêndio, quer os provocados... pela água utilizada no combate ao próprio incêndio. Este é um exemplo da impreparação que então existia e não creio que estejamos muito melhor agora.

 

As "grutas" de Alvito foram, em tempos, um dos monumentos mais visitados do concelho. O plantio de árvores na década de 90 do século XX provocou a derrocada de parte da estrutura, se bem me recordo, em 2011. A tutela e a Câmara Municipal de Alvito foram alertadas, tendo ficado explícita a necessidade de elaboração (e execução) de um projeto de recuperação do monumento por parte do município. Até hoje nada foi feito, colocando em perigo outros monumentos (ermida de São Sebastião e silos) e a própria integridade física das pessoas que todos os dias passam naquele local, pois a parte superior das "grutas" de Alvito não está completamente vedada e um eventual colapso pode facilmente resultar na morte de pessoas ou em ferimentos graves. E as forças que integram a proteção civil do concelho estão preparadas para lidar com a situação?

 

Lembrando o colapso de parte a torre de menagem do castelo de Beja, pergunto se alguma vez os bombeiros foram chamados a participar na vistoria de muralhas das nossas vilas e muralhas. Creio que nunca, ou muito raras vezes o foram. Não será importante tentar perceber em que zonas é que algumas muralhas poderão encontrar-se em risco de colapso? Não será importante procurar preservar a integridade física de pessoas e dos respetivos bens? Ainda há poucos anos, foi parcialmente destruída uma muralha da Idade do Ferro no decorrer do combate a um incêndio. E porquê? Simplesmente não sabiam que estavam a desmontar uma estrutura com elevada importância histórica e arqueológica.

 

A maior parte dos centros históricos das nossas localidades encontram-se muito degradados, contudo, não creio que haja uma prévia preparação de catástrofes. Imaginemos incêndios de grandes dimensões em qualquer um dos centros históricos do Baixo Alentejo. Existe alguma preparação para uma possível organização de possíveis teatros de operações. E existem treinos nesse sentido? Ou seja, as nossas forças operacionais estão bem treinadas para o socorro em catástrofes de grandes dimensões na malha urbana antiga de vilas e cidades?Infelizmente, o nosso país é "pequeno demais", na mentalidade, para o património que tem. Não o sabemos (ou queremos?) divulgar, não o preservamos, não o amamos o suficiente. Consta que não há dinheiro para preservar tudo. Engraçado: mas há dinheiro para salvar investimentos ruinosos feitos através de bancos como o Espírito Santo onde o Estado Português irá encafuar mais dois mil milhões de euros muito brevemente. Creio que 10 por cento dessa verba dariam para financiar estudos de impacto e as obras que o nosso património carece, para evitar as tais tragédias idênticas à que ocorreu em Paris.

 

Depois de tudo o que escrevi, creio que é este o momento de pensarmos em conjunto, colocando em diálogo todas as forças que integram a Autoridade Nacional da Proteção Civil em diálogo com os técnicos especialistas que andam no terreno e conhecem o nosso património como poucos. Talvez não fosse má ideia associá-los às células de planeamento, seja em ambiente urbano, seja em ambiente rural. Imaginemos um incêndio perto do santuário de Nossa Senhora da Cola e das ruínas da antiga vila de Marachique (perto de Ourique): não seria útil associar o conhecimento técnico à estratégia de combate ao incêndio? Penso que sim.

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