Diário do Alentejo

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Luís Godinho, jornalista

01 de junho 2019 - 08:00

"Passava da meia-noite quando o escrutínio terminou". O dia de eleições começou com a ameaça de abstenção elevada. "Mau tempo para votar, queixou-se o presidente da mesa da assembleia eleitoral". E, na verdade, durante as primeiras horas poucos eleitores apareceram. Depois formaram-se filas enormes junto às mesas de voto. O processo eleitoral decorreu com a normalidade desejada. A surpresa chegou no momento de atribuir vencedores e vencidos. "Os votos válidos não chegavam a vinte e cinco por cento (...) Pouquíssimos os votos nulos, pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de setenta por cento da totalidade, estavam em branco". Incrédulo, o governo manda repetir as eleições e o número de votos em branco cresce para 83 por cento. 

 

Em Ensaio Sobre a Lucidez (2004), José Saramago conta-nos o processo de rutura violenta entre o poder político e o povo, em que esse momento de contagem dos votos em branco desencadeia uma operação policial para descobrir e eliminar o "foco infecioso" que estaria a minar as bases da democracia. "Não ando a fazer propaganda ao voto em branco, apenas digo que existe, que é um voto perfeitamente legítimo e usá-lo não é um ato subversivo", explicou Saramago numa entrevista dada por essa altura. 

 

Lembrei-me do livro e da lição que ele encerra – apesar dos votos serem em branco havia um "povo inteiro" a participar no debate democrático – a propósito dos resultados das eleições europeias. Em primeiro lugar pela absurda taxa de abstenção, ou de abstenções. Não há, em boa verdade, uma única causa para justificar a abstenção, podendo invocar-se, com idêntica legitimidade, fatores tão diversos como as condições meteorológicas, o alheamento dos cidadãos face aos temas europeus, ou a indignação com abusos na gestão de cargos públicos. 

 

Mais difícil de explicar – e, porém, a carecer de mais aturada análise – é a constatação da existência de 140 949 cidadãos que fizeram questão de se deslocar a uma assembleia eleitoral para votarem em branco, sem se esconderem atrás de presumíveis indignações e resistindo à tentação de um dia de praia. Representam 4,25 por cento do total de votantes. Se lhe somarmos os 88 960 votos nulos (2,68 por cento), temos quase 230 mil votos brancos e nulos, um número maior do que as votações alcançadas pelo CDS ou pela CDU e seis vezes superior ao total de pessoas que votaram no distrito de Beja. 

 

O que nos diz este número? Não conhecendo nenhum estudo feito em Portugal sobre o tema, arrisco apontar, entre as muitas explicações possíveis, o discurso político caceteiro (revejam, por favor, as intervenções de Paulo Rangel logo desde os primeiros dias de campanha), mais preocupado em amesquinhar os adversários do que em debater propostas concretas sobre temas que verdadeiramente interessam ao nosso futuro coletivo, como uma das causas para o afastamento dos cidadãos da vida política. Uns, pura e simplesmente, não votam. Outros fazem-no em branco. Outros, ainda, anulam o boletim. Juntos representam uma faixa cada vez maior da população.

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