Diário do Alentejo

O Sistema
Opinião

O Sistema

Luís Godinho, Jornalista

11 de maio 2019 - 08:00

Não, “O Sistema” não é idêntico a “O Mecanismo”. São conceitos diferentes e, de resto, temporalmente afastados. Série criada pelos documentaristas brasileiros José Padilha e Elena Soarez em 2018, “O Mecanismo” inspira-se na operação Lava Jato para denunciar os truques de uma organização dedicada à corrupção, desvio e lavagem de dinheiro em grande escala. “O Sistema” é outra coisa. É mais antigo, com raízes nesse período trágico da segunda metade da década de 80, quando o cavaquismo era “ideologia” dominante e Jorge Nuno se entretinha a conquistar título atrás de título. 

Foi nessa altura que, pela primeira vez, ouvi falar nele. Um FC Porto/Benfica da época 94/95 anda aí pelo Youtube e ajuda a explicá-lo: o guarda-redes do FC Porto defende com a mão fora da área, a bola sobra para um jogador do Benfica que se encontra em posição regular, surge o remate e o golo, mas o fiscal de linha (ainda se chamavam assim) marca fora de jogo. Golo anulado e, lá está, “O Sistema” a funcionar. 

“O Mecanismo” materializa-se numa realidade concreta levada a cabo por gente conhecida. “O Sistema”, pelo contrário, é uma entidade abstrata, ou pelo menos com uma orgânica desconhecida da opinião pública, que por vezes aparece para influenciar um determinado resultado, seja no desporto, na economia ou na saúde. 

Só “O Sistema” pode, por exemplo, explicar os motivos pelos quais o Banco de Portugal não agiu a tempo de evitar o colapso do banco dos Espírito Santo. Deixem-me dar outro exemplo. Se, num determinado momento, a proposta de Lei de Bases da Saúde apresentada pelo Governo contempla o fim das parcerias público privadas (PPP) no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para, pouco depois, passar a ter um formulação segundo a qual tudo é possível, designadamente, a manutenção das PPP, é certo que temos “O Sistema” a funcionar. 

É verdade, como escreveu António Costa, que a proposta de lei apresentada pelo Governo “reforça o papel do Estado e clarifica as relações deste com os setores privado e social, afirmando a responsabilidade do Estado no garante e na promoção da proteção da saúde através do SNS e assumindo que a contratação de entidades terceiras é condicionada à avaliação da necessidade”. O problema é, justamente, essa “avaliação da necessidade”, conceito que poderá permitir a qualquer governante mais enquadrado com “O Sistema” fazer com que a gestão de hospitais públicos por empresas privadas se prolongue por tempo indeterminado. 

O que parece simples – a gestão pública daquilo que é público – só se torna complicado se o quisermos complicar. Imaginemos o que por aí se ouviria se a lei viesse instituir a possibilidade, ainda que supletiva e temporária, da gestão pública dos hospitais privados.

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