Diário do Alentejo

À noite só já comemos sopa
Opinião

À noite só já comemos sopa

Vítor Encarnação

14 de dezembro 2025 - 08:00

Se calhar devíamos comprar uma mesa mais pequena, esta é grande como um deserto onde nos sentamos de frente um para o outro como se estivéssemos de costas. Os pratos fundos cheios de sopa estão gastos como nós, nunca estreámos o serviço que nos deram quando fizemos trinta anos de casados, não o dizemos, mas tu e eu sabemos que é demasiado alegre para tanta tristeza, era um desperdício, mais vale estar dentro da caixa, pelo menos assim, não se parte, do nada, em mil pedaços como nós. À noite só já comemos sopa, passada a maior parte das vezes. Esse tipo de sopa é a que combina melhor com o silêncio, é pô-la à boca e engolir. Quando o creme de legumes nos passa pela garganta, leva com ele palavras por dizer, os gritos por dar, o desgosto, engolimos tudo, à noite engolimos os restos do dia. Tu chegas do teu dia e eu do meu, o que nos salva é ainda trabalharmos os dois, nem quero pensar no que será quando nos reformarmos, cada um com a sua colher a comer sopa, engolindo mágoas, a vida reduzida a um enjoativo creme de monotonia. A única coisa que se ouve na cozinha é o barulho da minha colher e da tua colher, uma vez uma e depois outra, cinquenta vezes cada um raspamos o fundo do prato até que nos surja o desenho de um girassol desmaiado no fim da sopa. Sabemos que o girassol vai aparecer, não há novidade, depois eu guardo o resto da sopa no frigorífico, amanhã é outro dia, principalmente outra noite, depois tu lavas os pratos, depois eu dobro a toalha propositadamente pequena para delimitar o deserto que é o resto da mesa. Enquanto os pratos com um desenho de girassol e as duas colheres escorrem no lava-loiça, cada um vai tomar os seus comprimidos. 

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