Diário do Alentejo

Não se podia ver televisão
Opinião

Não se podia ver televisão

Vítor Encarnação

14 de setembro 2025 - 08:00

No tempo em que eu ainda não sabia o que era a morte, não se podia ver televisão quando morria alguém da nossa família. Se fosse um tio, uma tia, um primo, alguém mais distante, na lidação e nos quilómetros, o uso era desligar a televisão na noite do velório e na noite a seguir ao enterro. Normalmente eram pessoas que eu não conhecia, primos dos meus avós, tios dos meus pais, gente que morava em sítios para além da minha parca geografia. Assim que chegava o telefonema, a minha avó ou a minha mãe, com ar pesaroso, certamente cheias de memórias da pessoa, davam a clara instrução para ninguém ligar a televisão e, seguindo a mesma ordem de ideias, também o rádio. Não se aceitavam peças de roupa coloridas, as vermelhas estavam fora de questão, e ninguém se podia rir. Lembro-me que no inverno, talvez por causa do frio, morriam mais desses tios e desses primos sem rosto. À conta dessas intermitências da morte, deixei de ver alguns episódios do Bonanza, do Marco, da Heidi, do Dallas e do Cinema de Animação.  Só não tinha pena de perder o TV Rural. Se morresse alguém mais chegado, sangue que nos deu sangue, colo que nos deu mimos, o uso era não ligar a televisão durante uma semana, não falando do rádio, da roupa colorida e do riso. Quando morreu a minha avó, eu aprendi a conhecer a morte, essa coisa fria, silenciosa, pálida, preta. Mas eu era tão novo, os meus primos eram tão novos, queríamos rir, as crianças constroem-se através do riso, queríamos camisolas verdes e vermelhas e azuis, e principalmente queríamos ver televisão. Eu não conseguia perceber por que razão o Speedy Gonzalez, o Tom e o Jerry, o Bucha e o Estica faltariam ao respeito à minha avó. 

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