Diário do Alentejo

O Sol quando nasce
Opinião

O Sol quando nasce

Vítor Encarnação, professor

06 de setembro 2025 - 08:00

O crepúsculo vai tomando conta da tarde, rouba a claridade e os reflexos dos vidros dos prédios altos onde ninguém irá dormir porque as camas fazem-se e desfazem-se apenas no outro lado do rio.

 

Mulheres e homens, ainda novos, já tão velhos, contam as moedas que estão no prato onde hão de comer restos nas traseiras dos restaurantes caros e fumam beatas apanhadas do chão imundo até os lábios tocarem no fogo.

 

As mulheres e os homens, cujas idades são um mistério, não é raro terem cães a quem dão a melhor parte dos restos que acham. A noite cai, os homens e as mulheres que parecem não ter nem passado nem futuro gostam da noite, a noite torna-os ainda mais invisíveis, o escuro é a casa onde eles moram, uma noite de cada vez, vivem uma noite de cada vez.

 

Ninguém sabe de onde eles vêm, parece que foram postos ali para fazerem parte da cidade.

 

Ninguém quer saber a sua história, talvez nem eles se lembrem, talvez eles próprios se tenham já convencidos que nasceram ali, assim vestidos, assim sem dentes, assim sem camas. Talvez noutro tempo tenham vivido do outro lado do rio onde as camas se fazem e desfazem.

 

As mulheres e os homens, talvez novos, talvez velhos, fazem casas no chão das ruas. Talvez à custa de pancada, talvez por usucapião de um bocado de calçada, conquistaram sítios privilegiados, lugares abrigados do frio, da chuva e do vento. A alvorada vai tomando conta da noite, repõe a claridade.

 

Há um homem, talvez uma mulher, que dorme no passeio tapado com uma manta. Tudo em volta é ainda sombra, apenas aquela cama de cimento é inundada de Sol. O corpo espreguiça-se, depois aconchega-se e depois dorme outra vez. Um holofote de luz ilumina este teatro do absurdo. 

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