Somos filhos da madrugada, respeitando com a indispensável vénia a metáfora lusa, em que a auréola celestial de um simbólico nascer do sol transmite liberdade para uma vida feita de pequenos nadas, mas, por outro lado, que se tornam enormes quando apreciamos a dedicação dos protagonistas na entrega à modalidade que preenche os seus egos. É verdade que os seus nomes não são substâncias desportivas que enchem páginas de jornais nacionais, nem tão-pouco são motivo de abertura para os telejornais, são, porém, atletas que se expõem a um público, sobretudo, jovem, que conscientemente os aplaude. Aliás, numa meticulosa jornada aos misteriosos conteúdos desportivos aportamos no esplêndido futebol de rua, viajamos por tempos áureos e revemos imagens exatamente inesquecíveis. Da velha artéria de aldeia, vila ou cidade, ao bairro mais árido deste infinito planeta, passando pelas favelas ou guetos onde as carências extremas ditam tácitas ordens gregárias, para além das típicas savanas africanas, o futebol criou raízes profundas numa sociedade que se moldou a uma modalidade onde o ocasional e pressuposto mendicante se transformou num homem conhecido e senhor de uma conduta estratosférica que o eleva a um lugar de veneração. Na alta competição sempre proliferaram atletas oriundos do trivial futebol de rua. Lembro, enquanto criança, me deparar com jovens que cedo manifestavam talento para acarinharem a mítica bola, não obstante a sua matéria-prima se rotulasse como de trapos. O requinte do pormenor inserido na figura franzina do fedelho suscitava interesse naquele velho “olheiro”, que passava horas a fio a deliciar-se com os feitos da miudagem. A eles, aos garotos, ninguém lhes ensinara a forma de jogar, logo, a sua apetência assumia-se como inata. O momento do passe, do remate, do golo ou da aprimorada finta exalava o dócil cheiro de um fino bálsamo e suscitava cavaqueira entre grupos que viviam o esplêndido prodígio futebolístico. Mais tarde alguns assumiram o estatuto de genuínos craques, levando multidões ao deslumbramento, sendo merecedores de efetivos aplausos de uma multidão que os acolhe efusivamente no interior das quatro linhas. Agora, outros mecanismos existem para elevar o futebol de rua a parâmetros antes inimagináveis. A Associação Cais, em parceria com a autarquia bejense, bem como o agrupamento do Bairro da Esperança, levaram a efeito, no exterior da Casa da Cultura de Beja, a final do 23.º Torneio Nacional de Futebol de Rua, uma competição que albergou 18 seleções, masculinas e femininas, a que se juntaram, por convite, as formações do México e da Polónia. Segundo apurámos junto ao responsável pela Associação Cais, estiveram presentes no acontecimento 232 atletas, masculinos e femininos, em representação de 18 equipas, mas sendo o total das presenças que intervieram na circunstância de 317, tendo em conta os responsáveis, árbitros e todo o staff envolvido. Como nota final ficam os nossos aplausos por tão brilhante acontecimento que elevou Beja ao mais alto patamar, com a Associação Cais e seus parceiros a merecerem rasgados elogios. Exorte-se, e com colossal dignidade, a entrega dos atletas a uma competição onde não faltou emoção. Todos, no cômputo geral, saíram vencedores. Parabéns pela brilhante iniciativa.