Diário do Alentejo

Carpideira
Opinião

Carpideira

Vítor Encarnação

18 de julho 2025 - 08:00

A família sabia que não tinha lágrimas suficientes para um dia e uma noite inteira de velório. Durante a sua vida, o defunto não criara ligações emocionais que justificassem grande dor, muito menos um choro pegado desde o óbito até ao enterro. Há pessoas que vivem mais fora da família, umas por desentendimento, outras por necessidade, há famílias que não percebem a natureza do indivíduo e por isso olham para ele como uma espécie de intruso, um corpo onde não devia correr o mesmo sangue. Mas eram tempos em que a mágoa da morte tinha de se fazer ouvir, a perda de um ente próximo não aceitava silêncio. Uma esposa não devia permitir que houvesse silêncio, mesmo que a morte do esposo tivesse sido uma bênção. A família tinha de ir comprar luto, choro, lágrimas e ladainhas. E havia quem as vendesse à hora, havia quem soubesse acumular em si toda a dor e todo o negro mistério da morte. Encontraram uma carpideira que não quis dinheiro, encontraram uma que começou logo a chorar assim que lhe disseram que o homem tinha morrido. Acharam estranho um choro tão precoce, tão intenso, mas se calhar era porque ela era muito boa na sua função. A mulher chegou carregada de luto. Ao lado da viúva, era um negrume e uma fonte de ais. Quem não sabia, era a ela que se dirigia. A família ia e vinha, a viúva ia e demorava a voltar e a mulher ali estava encostada ao caixão, talvez rezando, dizendo coisas que só ela e o morto percebiam, parecia que falavam um com o outro. O  morto parecia chorar, foi uma lágrima dela que lhe caiu no rosto. A meio da noite, quase todos saíram da casa mortuária e os poucos que ficaram adormeceram. Ela pegou-lhe na mão e beijou-o. Era a primeira vez que lhe tocava. 

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