Diário do Alentejo

Respirar
Opinião

Respirar

Vítor Encarnação

13 de julho 2025 - 08:00

Quando tu estás, o ar não chega para nós os dois. O ar é todo para ti, não sei se sou eu que o cedo, se és tu que mo roubas. Só já faltava isso, tudo o resto já há muito tempo que se perdeu algures entre a ingenuidade, a tristeza e a esperança, primeiro por esta ordem, depois pela ordem invertida. Esta última sequência ainda foi mais terrível porque me afastou irremediavelmente da dignidade. Quando ainda acreditamos nos sonhos que tivemos, somos capazes de dar a alma ao diabo. Eu dei-ta, fiz de conta que a culpa do teu aborrecimento era eu, aceitei que as tuas palavras entrassem em mim como se fossem facas, ao início eram pequenos cortes, depois a lâmina toda, enterrada funda como um grito. O grito era teu, eu não fui capaz de gritar, a dor era tanta que me calei. Ando com a faca espetada na vida, nem tu a queres tirar, nem eu tenho força para a tirar. Quando me mexo, sangro, quando penso, choro. Quando tu entras, a casa fica sem ar, sorves a sala, principalmente o nosso quarto, só na cozinha, ali ao lado do lava-loiça, é que eu ainda consigo respirar um bocadinho. Quando sais, o ar volta, mas vem frio, vem triste, vem oco, é apenas oxigénio e eu precisava que o ar fosse coragem, precisava que o sopro fosse a capacidade de te deixar. Ao pé dos nossos amigos, para que eles não me vejam a morrer com falta de ar, aprendi a fazer apneia. Mergulho no silêncio e, por entre gargalhadas, não abro a boca, apenas respiro pela mágoa, uma hora ou duas, a noite inteira, o que for preciso. Para não te perder, para não perder a ideia de nós os dois, aprendi a viver sem respirar. Mas talvez eu já não exista, se calhar já morri e ainda não sei, provavelmente foi um ar que me deu. 

Comentários