A minha mãe fez oitenta e três anos.
Desses oitenta e três, a morte só a deixou viver setenta e três, os outros dez é a idade de um neto que ela já não conheceu. O sangue que corre nas veias dos filhos e dos netos é a resposta que se dá à morte, o sangue da minha mãe não morreu nesse dia.
Lembro-me bem, há dias que não se esquecem, certamente que a minha mãe não se esqueceu do dia em que me teve, eu não me esqueço do dia em que deixei de a ter. Almoçámos, por essa altura ainda ninguém se conseguia sentar no lugar que era do meu pai, deixávamos o lugar vago, a cadeira vazia, não fosse ele arrepender-se da morte e quisesse voltar, a minha mãe ficou a lavar a loiça e eu fui trabalhar, disse-lhe até logo, ela disse-me até logo, depois imagino que tenha varrido, lavado a cozinha e o corredor e arrumado a bata azul. Deixei de imaginar quando me bateram à porta e não me disseram tudo, disseram o suficiente, é melhor ir lá, precisam que vá lá, e eu imaginei o resto.
Como a morte sabia que a minha mãe não gostava dela, não a quis levar logo, entrou-lhe de repente no cérebro e roubou-lhe a fala, a luz dos olhos, a razão, as emoções e um neto que haveria de nascer pouco tempo depois.
Não sei se já alguma vez viram a magana da morte a espreitar-nos de dentro do corpo petrificado da nossa mãe, sem sabermos se ela nos ouve, se sofre, se sente a nossa mão na cara, ainda quente, já tão fria. Dias e noites, noites e dias, à espera de tudo, já à espera de nada, a morte a rondar a cama do hospital, a não sabermos o que queremos, a não sabermos o que é melhor. Dizem que a esperança é a última coisa a morrer, mas primeiro morreu a esperança e depois é que morreu a minha mãe.