Quando eu era pequeno não gostava de sair à noite, melhor dizendo, tinha medo de sair à noite. O escuro fazia-me imaginar coisas, as ruas mal iluminadas desenhavam sombras nas paredes e dentro de mim. Já havia algum tempo que a minha tia me andava a tentar convencer a ir ao cinema, em cada sábado à noite passavam lá por casa dois ou três colegas de turma. Levámos algumas semanas nisto. Eles a tentarem convencer-me a ir, eu a inventar desculpas para ficar a ler livros de aventuras no conforto do meu quarto. Mas há uma noite fatídica em que a minha tia, farta da minha teimosia, me terá pegado por um braço e obrigado a percorrer três ruas até à porta do cinema, comprou um bilhete e empurrou-me para dentro da sala. Escusado será falar do choro pegado e da galhofa dos moços que me diminuía ainda mais a pouca coragem que eu já tinha. Entrei, as lágrimas não paravam, tudo era grande, a sala cheia de gente habituada aos filmes e à noite escura. Já imaginava o regresso a casa, seria quase meia-noite, haveria certamente bêbados e gatos assanhados, barulhos indistintos e candeeiros partidos. Mas depois apagaram-se as luzes e um foco de luz desenhou letras na parede branca. The Guns of Navarone. Os Canhões de Navarone. Depois, à medida que o filme se desenvolvia, algo de mágico me envolveu, algo de surpreendente me marcou para sempre. Quando o filme acabou era quase meia-noite, a noite estava límpida e silenciosa, os candeeiros davam uma luz brilhante como se fosse dia. Comecei a querer ir todos os sábados, começava a moer logo à segunda-feira, os meus colegas de turma ficaram proibidos de passar lá por casa e a minha tia prometeu-me umas belas nalgadas.