No outro dia tentei rir e não consegui. Achava eu que tinha a boa disposição gravada na memória e que bastava pensar em algo agradável e a gargalhada assomava-se logo à garganta. Mas inesperadamente a memória não estava lá, a memória do riso ou morreu ou anda perdida, talvez na cisma, o rosto ficou petrificado, a língua dormente, a boca impávida, os dentes quedos, os lábios lerdos, a pele inerte, a carne gelada, os olhos baços, os músculos paralisados. Ouvi pessoas a rir ao meu lado, parecia um ato tão fácil, tão espontâneo, a felicidade a abraçar a graça, a satisfação de mão dada com a alegria. Tentei novamente, uma e outra vez, mas já não consegui comandar o contentamento. Eu sabia que costumava rir, eu sabia fazer rir os outros, só não sabia quando é que essa proeza tinha cessado. Fui para casa à procura de fotografias, coloquei-as cronologicamente sobre a mesa e reparei que com a idade o sorriso foi mirrando, ao meu lado, nas fotografias e na vida, as pessoas mantinham o sorriso mas eu parece que deixei empedernir o rosto. Perguntei-lhes se elas se lembravam de eu me rir e elas diziam que sim, que eu ria muito. Perguntei-lhes se elas achavam que era demasiado tarde e elas disseram-me que nunca é tarde para sermos um pouco mais felizes. Decidi experimentar. Ativei lentamente os nervos faciais zigomáticos e fabriquei uma expressão frágil que ainda não conseguia de maneira nenhuma ir dos lábios até aos olhos. Precisei de praticar muito, a princípio era apenas um sorriso amarelo, depois consegui que ficasse parecido com o sorriso forçado do cartão de cidadão e por fim fiz ouvir o meu riso na rua. Fiquei tão feliz.