Diário do Alentejo

Os vivos e os mortos
Opinião

Os vivos e os mortos

Vítor Encarnação, professor

18 de janeiro 2025 - 08:00

Decidimos que a sala de estar é o sítio da casa onde melhor convivem os vivos e os mortos das nossas famílias. Temos dois móveis grandes, um de cada lado do sofá onde gastamos as noites que ainda nos restam.

Já não dizemos quase nada um ao outro, às vezes pergunto-te se queres jantar e tu dizes-me que espere mais um pouco, ainda não são oito horas, gostas de comer à hora do telejornal, a mim não me faz diferença, não me importo de esperar. Esperar é uma arte que se aprende com o tempo, demora muito mas chega-se lá.

Do teu lado direito estão as fotografias dos vivos: nós os dois, parte da minha família, parte da tua, os filhos, os netos, os sobrinhos. Do meu lado esquerdo estão as fotografias dos mortos: os teus pais, os meus, tios, irmãos, primos, um filho. Quiseste ficar com os vivos, dizes que as mulheres sabem lidar melhor com a morte, podias ter acrescentado também com a vida, as mulheres aguentam mais do que os homens conseguem imaginar. Quando nos morre alguém tu tiras a fotografia do lado dos vivos, dás-ma e eu ponho-a no lado dos mortos.

Deste-me o teu pai, depois o meu pai, depois a minha mãe, depois a tua, o meu irmão, quatro primos, o nosso filho, demoraste tanto tempo a tirar o nosso filho do lado dos vivos e eu demorei tanto tempo a pô-lo do lado dos mortos.

O teu lado vai ficando cada vez com menos gente, o meu vai crescendo cada vez mais, qualquer dia tenho de ocupar outra prateleira. Por cada três que morrem nem um nasce. Chegará o dia em que teremos de quebrar o hábito de tu tirares as fotografias do lado dos vivos para eu as pôr do lado dos mortos. Um de nós terá, sozinho, de fazer as duas coisas. 

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