Tenho as minhas razões para gostar de comer uma açorda no dia de ano novo.
Não são certamente as razões de quem sente a necessidade de se engalanar e ir comer fora, junto ao mar ou a outro sítio cintilante que dê a sensação de entrarmos fortes e aprumados no novo tempo.
Comer uma açorda tem duas vantagens. Por um lado desenjoa gorduras e doces e por outro lado mantém uma identidade gastronómica e existencial.
Se a primeira vantagem é importante para quebrar um ciclo de excessos alcoólicos, de desmesuras fritas e de vícios açucarados, a segunda vantagem é fundamental para me afirmar como homem deste Sul que às vezes parece que se vai entregando a algumas modernices, que, sem prejuízo de poderem ter o seu espaço culinário, não me confortam nem o palato nem o estômago.
E por isso escolho comer uma coisa que me saiba a memória e à certeza de quem sou e de onde sou.
Comer uma açorda é uma manifestação cultural, um ato de defesa da nossa índole, fazê-lo no primeiro dia do ano é sublinhar a alma do pão e do azeite.
Em cada casa transtagana, em todas as cozinhas com pronúncia de planuras e montados, devia instituir-se a açorda como primeira refeição do ano para que isso se tornasse hábito e para que esse hábito se tornasse tradição.
Imagino famílias inteiras à volta da mesa, venerando o pão, o azeite, o sal, os ovos, os coentros e os alhos, pondo na boca a sua herança, alimentando-se do seu costume e da sua história, desejando um feliz ano novo uns aos outros, sabendo e sentindo que a sua raiz precisa de ser regada com água a ferver. No dia um de janeiro de cada ano devia ser obrigatório comer uma açorda.